Alberto Bresciani


Pedras ao mar
E se estávamos ali,
fixos no movimento
uniforme das ondas,
era que dividíamos
ventos, os poucos,
as tempestades,
as aves marinhas
e seus peixes, as aves
marinhas já mortas
Todos os ciclos
nos pertenciam
– ainda que distantes
nos parecessem
as nossas ilhas
Não tínhamos olhos
E assim era melhor
Sem ossos,
somos aquelas pedras
para sempre.
Anatomia
Para o que servem coração,
rins, fígado, veia cava,
gônodas e glândulas
vocacionadas ao pó?
Todos os dispositivos
complexos, ligados, frágeis
dentro de enguias, ursos,
tartarugas e gaivotas
Não importam cordilheiras
em transe, o livro nunca lido,
abstenções de carne, álcool,
esportes radicais, sexo e ar
Inúteis feixes de nadas
no fim das contas,
que pagaremos felizes
nesta segunda-feira.
Habitat I
Guardei sob a pele
todos os peixes, as conchas,
anêmonas, veleiros antigos
e recuperados aos sargaços
Ninguém conheceu
os oceanos que devoravam
as moças e os rapazes
de olhos castanhos
O silêncio da maré baixa
sabe o doce
de frutas selvagens,
um mundo híbrido,
primeiro, anfíbio
À custa de nomes marinhos,
sobrevivo
Aprendi a respirar na água.
Pânico
O pássaro sobre o galho,
hipnotizado pelo gato,
pela serpente, preso
como se houvesse visgo
sobre o ramo comum
Uma ave sem voo,
pronta ao voo,
os olhos esbugalhados
de medo do ofídio, do felino
que nunca existiram.
Bisões
E seguimos como bisões,
olhando para a frente,
em disparada, fugindo
de absolutamente nada
e de quase tudo
No caminho, outros bisões
se juntam ao grupo
e continuamos todos,
aos atropelos, na mesma rota
Corremos, nós os bisões,
para onde não sabemos
em uma pradaria fictícia
que, a exemplo dos rios,
é outra a cada migração
Olhamos para a frente
e nos perguntamos,
os olhos bovinos,
se este é mesmo
o nosso lugar.
Golfinho
O dorso sobre a areia grossa,
a pele rasgada ao sol
e pelo atrito das conchas,
preso à terra que não quis,
enquanto as gaivotas
gritam o fim
Ainda o poderiam salvar
a maré mais alta
ou uma onda que encontrasse
o céu cinzento
Mas ao país chegaram
os bárbaros e seu rei
e à invasão cederam
todos os mortais
Vêm agora com suas facas,
suas cimitarras
Logo, o primeiro corte.
Souvenir
Todo o tempo, vamos embora
e, no entanto, não nos perdemos
de vista em instante algum
Tentamos um novo enredo,
mas a memória é outro corpo
que arrastamos e decai
com os nossos, permanece,
cicatriz, nome que nunca cessa
E se nos víssemos entre os vivos,
outra vez na multidão? A imagem
fixa de susto e nos perguntaríamos:
e agora, quem some? Nenhum
de nós: somos a provação,
o cravo nas costas, as vértebras
e suas cracas para sempre,
um aleijão, a fisgada em cada gesto
Não nos esquecemos, sim,
nos esconderíamos com a mentira,
não nos lembramos, não
nos lembraremos de esquecer,
tornaremos os rostos à parede
mais vendo assim, transe,
mais sabendo que somos nada,
aprisionados nos nossos estômagos
Sim, a memória é uma unha
e ainda que cortemos o dedo
que a leva, e mesmo amputados,
leríamos a mutilação, a dor
fantasma, o concreto, toxina,
o plástico nas narinas,
o afogamento, a despeito
das transparências
E nos olharíamos, os mesmos,
quase os mesmos, despojos
de dias gastos.

Alberto Bresciani nasceu no Rio de Janeiro. Vive em Brasília. É autor de Incompleto movimento (José Olympio Editora, 2011) e de Sem passagem para Barcelona (José Olympio Editora, 2015, finalista do prêmio APCA de Literatura - Poesia de 2015). Integra, entre outras, as antologias Outras ruminações (Dobra editorial, 2014), Hiperconexões (Editora Patuá, 2014), Pássaro liberto (Scortecci Editora, 2015), Pessoa – Littérature brésilienne contemporaine (Revista Pessoa, edition spéciale – Salon du Livre de Paris, 2015) e Escriptonita (Editora Patuá, 2016).