António Vera


[sem título]
da talha benta da senhorinha morta,
vazio o bojo de pedra, polido.
o rosto deitado da senhorinha morta,
cobre-o um lenço de linho.
quem foi o rosto copiado em cera e lírio
da senhorinha morta?
responde (o que responde?) o bojo polido,
o bojo da talha benta da senhorinha morta,
com uma lágrima de vidro:
conta de um terço rezado à senhorinha morta,
em tempo ido.
in cursivo menor, 2000, pág. 20.
[sem título]
a morte é um planeta inabitado,
donde partiram quantos ali foram
ou voluntariamente ou enganados,
buscando alojamento, paz, alfombra,
descanso para a alma, ou magoados
por não haver onde esconder a sombra.
tal planeta lá para oeste fica,
bem para trás do sol posto, onde se expande
o raio verde, com o fim do dia,
sarcástica mansão dos desenganos
dum mundo atafulhado só de vida,
mas que à vida responde só com vida
e aos desenganos só com desenganos;
onde o tempo-matéria se desfaz
com presteza contrária à da luz
e os calendários giram só pra trás
in palavras com rosto, 2000, pág. 75.
roleta
uma fonte, dois cântaros:
em um deles, veneno;
de um só tu beberás.
a tua sede aperta.
alguém te diz “és livre”;
alguém te diz “és cego”.
a tua sede é muda.
acerta ou desacerta,
mas beberás com pressa.
e, certo, serás livre,
nesse momento eterno,
que tu decidirás.
in as pestanas de Afrodite, 2001, pág. 29.
torre do bugio, pau de água
à beira de um tejo azul,
grosso pau de água soluça
verdes folhas enlaçadas
em forma de coração.
chora a tepidez dos trópicos,
chora por chica da silva
que lhe afagava o formato
de pau-brasil em ereção,
e os quindins de sinhá-moça,
ao passar por ele as mãos,
duas mil léguas pra lá
dum meridiano a oeste
deste que o ata por cá.
ai! porque as mãos de sinhá,
palmas de leite de coco,
levam-no ao bugio mirar
como se ele fosse um sinal:
a torre sendo um pau de água,
prantado à barra do tejo,
pelas águas enlaçado…
e as dobras das ondas fossem
as lamas das mãos de iá-iá.
in escrito na margem, 2003, pág. 43.
ESTA APAGADA E VIL TRISTEZA
(agosto, 2003)
entre a piedade e o desalento
revejo monte e vale:
queimado quase tudo
sujos rios
pobres
desempregados
traficantes
bêbados de poder
e de arrogância
ou de mau vinho.
e indigno-me sozinho
comigo e o nosso mal:
terem-nos roubado
o gesto e a sanha
o número e a vontade
as luzes do saber
sequer a manha
de dar sentido e nome
a Portugal.
in sons que falam, 2004, pág. 100.
FLOR DE SANGUE
caem sonhos no poço onde cai sangue
arterial, contigo misturado,
como um pastor no meio do seu gado
segue o expirar da tarde estreme e langue.
e no poço flutua a flor do mangue
que no líquido vive – é o seu fado –
e no líquido morre: lado a lado,
vida e morte excessivas, força exangue.
é nesse espaço rubro, em quatro quartos,
que a terna flor, vivendo as estações,
dá sustento a nós dois, tornados plasma,
a circular no corpo, em sonhos fartos
de posse, de avidez de sensações,
ébrios da fina dor que entusiasma.
in de amor e desengano, 2005, pág. 108.
O LACRIMENSOR
chora-me ainda hoje
a minha morte breve
para eu saber
se ainda me memoras
medir-te as lágrimas
no rosto
bebê-las a correrem
plo teu corpo
tocar a minha vida e morte
em trasladado gozo
e evaporada a alma
dessas lágrimas
tomá-la dos teus olhos
tão bem vivos
in estrofes elementares, 2007, pág. 102.
ESCONJURANDO O INVERNO
desde a raiz da minha vida
uma seiva de fé e de certeza
me sobe ao coração
e a tenho presa
no estame desta flor
que a ti entrego
põem-na entre os teus seios
esses meus amores
como os teus olhos
boca
quanto és
porque dessa união
nos nascerá um filho
primaveril e doce
a esconjurar invernos
in amor sempre e a seguir, 2009, pág. 31.
PORTUGUÊS MEU AMOR E LÍNGUA MINHA
minha língua-mãe
confusa e linda
relampejas de luz
e crias trevas
onde flutua a tua omnisciência
que é dos nossos sonhos
o mar onde nos levas
a descobrir o mundo
o mundo avassalado
por capitães do lucro
e da ganância
esfarrapada e bela
velha e jovem
que outros irmãos te vistam
e alimentem
onde eu falhei vestir-te
de rainha
e te peço perdão
por esta minha torpe
insanável e tola
inconfidência
in folha a folha os dias, 2010, pág. 73.
OS PÓLOS SENSÍVEIS
coração foi-me guitarra
quando coração havia
e o céu enchia e vazava
de meu amor e alegria
por isso eu pra ele olhava
e a melodia nascia
e havia uma pedra rara
que dentro de mim caía
e com ela me arrastava
a dias sem sol de luto
onde ninguém habitava
senão a mágoa sem fruto
mas sempre havia a guitarra
pra quem a tocava havia
dois mundos que se fechavam
mas que alternados se abriam
agora sonho o meu nada
cordas guitarra partidas
in o frio das metáforas, 2011, pág. 84.
VELEIRO
qual a vela
salgada de um veleiro
enfuno e vou direto aos horizontes
sem escolher nenhum
eles que me escolham
extinto o raio verde da memória
a estrela da manhã
e a sua história
tanto que o vento sopra
sopra hinos
todos sacros de adeus
não voltarei
voltar é renegar o tempo ido
e isso eu não farei
in apostila (2015, edição póstuma), pág. 55.

[José] António Vera [de Azevedo] nasceu em Lisboa, na freguesia das Mercês, a 22 de junho de 1923, e faleceu na mesma cidade a 26 de dezembro de 2012.
Trabalhou desde muito novo: foi empregado no comércio, agente de seguros, funcionário da Contabilidade Pública. De 1958 a 1987 trabalhou nos Serviços da Emigração como representante do governo português para os assuntos da emigração nos países de acolhimento e, já no final da sua carreira, como técnico superior, veio a aposentar-se da ex-Secretaria de Estado da Emigração e das Comunidades Portuguesas. Ao serviço da Emigração fez inúmeras viagens, tanto por Portugal como pelo estrangeiro, entre os quais se contam a maioria dos países americanos, vários da Europa, assim como no Irão, tendo-lhe sido necessário dominar fluentemente o Francês, o Inglês, o Castelhano e o Italiano. Completou diversos cursos, entre os quais o Curso Complementar dos Liceus (secção de Letras), o Curso Complementar de Comércio, o Curso do British Council, o da Alliance Française e o Instituto de Estudos Sociais, tendo‑lhe sido conferido o diploma de Política Social pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa. Também frequentou a Faculdade de Letras de Lisboa, onde não concluiu estudos devido ao facto de não lhe ser permitido faltar ao trabalho para frequentar as aulas e por não existir ensino noturno. Entre 1947 e 1951 colaborou em várias publicações literárias, nomeadamente na Távola Redonda, fundada por António Manuel Couto Viana e David Mourão-Ferreira, nas revistas Seara Nova e Atlântico, e fez parte dos amigos da Árvore. Exemplos de alguns textos publicados nas revistas citadas acima: Seara Nova: 13/9/47; 1/11/47; 24/2/49; Távola Redonda: 5.º e 7.º fascículos; Atlântico: n.º 5; e revista de Outono de 1951. Foi citado como um dos seus amigos no número da revista Árvore – Primavera e Verão de 1952.
Inscreveu-se como sócio na Sociedade Portuguesa de Autores sob o n.º 4824. Conviva e amigo dos poetas Daniel Filipe e Raul de Carvalho, confraternizou também com José Osório de Oliveira e José Terra. Mas, por dever de ofício e contínuas viagens, não lhe foi possível manter contactos estreitos com estes amigos e outros cultivadores das letras portuguesas. De 1972 a 1974 foi o principal compilador e redator de uma revista informativa editada pelo então Secretariado Nacional da Emigração, o Correio do Secretariado, e de uma revista para jovens filhos de emigrantes, o Boletim da Amizade. Em fins de novembro de 1975, numa viagem de serviço no navio Eugénio C, que fez escala por Génova, e em consequência de uma atribulada mudança de camarote, perdeu uma volumosa coletânea de poesias que tencionava publicar no ano seguinte. Ao empenho extremadamente dedicado de sua filha, Maria José de Azevedo, se deve a publicação da sua obra poética, a qual compreende onze volumes: dez publicados em vida e um volume póstumo. António Vera é também contista e publicou um grande número de artigos ao longo de toda a sua vida.
Da bibliografia ativa do autor contam-se os seguintes volumes: cursivo menor (1998); palavas com rosto (2000); as pestanas de Afrodite (2001); escrito na margem (2003); sons que falam (2004); de amor e desengano (2005); estrofes elementares (2007); amor sempre e a seguir (2009); folha a folha os dias (2010); o frio das metáforas (2011); apostila (2015, edição póstuma). Está em perspetiva a publicação da obra do autor nos países de língua portuguesa.