Denise Freitas


Os dias de janeiro
Terra natal era a casa de minha avó
com seu salso-chorão pesado que pra mim
era a tristeza toda e a dor de todo mundo.
Também a aparição do mar, de embarcações
e de rajadas trazendo a aridez das dunas
para dentro dos olhos, sobre outro horizonte.
A descoberta da longitude traçando
um lugar de interstício. Os dias de janeiro:
um intervalo para cada nascimento.
Depois deles, retorno à vida de costume
onde sempre era fácil alcançar o céu
que por inteiro então cabia numa nuvem
firme e quase redonda em risco azul de giz
gravada no chão breve de qualquer calçada.
Rumor de nuvem
De alto a baixo o vazio deita ausente no universo.
A imensidade bravia ganha, de vaga em vaga
(como um vento alvoroçado demolindo a vida),
o vasto vale onde a leve ideia da calma pasce.
Num estardalhaço apresentado aos astros, assustado,
o céu sem chama estampa a estranha cor castanha.
Cor igual à da lama que toma as fartas águas claras dos rios
quando o mesmo céu se desmonta e tomba sobre terra.
Então o espaço inteiro ronca destroçado na tormenta atordoada.
Agora a fúria arrefece.
O ar parado oferece seu silêncio falso.
Devagar a luz avança. Desde o leste intangível
acende o seco dos ruídos corriqueiros
com as mãos mansas na manhã ainda úmida.
Outras coisas cortam
Umas quantas sombras, leva, atravessam todo território.
Centenas de corpos muito mais que sombras aterroram
massacres e a tonelada de equívocos que os acompanha.
Ainda assim, sobram outras coisas sob o fumo das gentes.
Perto dali, crianças andam ruas onde não há calçada; no mesmo
caminho, uma delas cruza manhãs e restos que não são seus.
Sobra para ela, que leve, seu rumo frágil e de mais dois irmãos.
Ainda assim, pesam outras coisas sobre o sono das gentes.
O solo se desdobra, reveza de alto a raso o escuro líquido
que corre ao lado. Dentro desse veio adormece outro rio-rastro
todo força revestida daquilo que de hora em hora desiste.
Ainda assim, outras coisas cortam desde o leito das gentes.
No fim da tarde, meninas trocam entre si alguns enfeites.
Como quem fala histórias de assombro, ensinam umas às outras
truques de evitar estupros, e o que há nas cadeias, e nas bocas.
Ainda assim, sempre mais ilusão recobre o horror das gentes.
Breviário de um trajeto rude
Os espinheiros que perfazem o caminho
exercem sobre o chão uma ameaça ressentida.
A natureza dessa ocupação fere de tanto seco desfolhado
todo aquele que toca ou mesmo vê distantes
os espinheiros que perfazem o caminho.
Palmilhando o terreno cercado de esporas,
quem se aventura nesse trecho, ouve ruídos
de pedra esfalecida e sabe também sua mesma míngua.
Já não recorda de onde vem, pois segue somente
palmilhando o terreno cercado de esporas.
Aqui a vida é toda um corte sobre o outro
e cada palmo do corpo é uma história que não vinga.
A pele se entrega ao galho, o chão se rende ao corte.
Um cenário de feridas secas grita a todo instante:
Aqui a vida é toda um corte sobre o outro.
Os olhos que guardam o muro
Desde o longe mais antigo eu habito o mundo
nos olhos dos estrangeiros. A ocupação assustadiça
de sombra refece palmo a palmo qualquer vontade.
Nos quintais das casas nada diz minha tristeza
nem a de todos os outros
calcinados no tumulto indecifrável das ruínas.
Por mais que se faça a morte é o que não existe.
O que de mim esquece mira três rigores:
o mar, o céu, o monte.
Apesar de tanta força o movimento dos meus olhos
sustenta o silêncio ao pé do muro
e, acima dele, um vento sem enredo algum.

Denise Freitas nasceu em Rio Grande (RS), em 1980. Escritora e Professora; publicou os livros Veio (2014), Mares inversos (2010) e Misturando Memórias (2007); está entre os autores que compõem a Coletânea de poesia gaúcha contemporânea (Assembleia Legislativa do RS, 2013) e a Antologia poética: Moradas de Orfeu (Letras Contemporâneas, 2011); possui publicações de poesia e crítica literária em revistas como Sibila, Germina Literatura, Musa Rara, Artistas Gaúchos e Modo de Usar.
Escreve o blog: www.sisifosemperdas.blogspot. com