Danyel Guerra


“Au cinéma, c ‘est toujours plus beau”
Jacques Demy
Françoise Dorléac (1942-1967)
Julho de 1967. Caminhava para o fastígio o verão desse ano. Num dos primeiros dias do mês, eu folheava um exemplar do Paris Match, que ganhara de um parente migrado em França. Era uma edição toldada pelos fumos negros do luto, nas páginas onde se reportava o desastre que vitimara uma bela e talentosa atriz dos novos tempos do Cinema francês. Um ser humano pulsante de sangue bom, quente e latino.
No dia 26 de junho de 1967, ela dirigia, vinda de Saint Tropez, um Renault 10 alugado, na auto-estrada La Provençale/A8. Seguia em direção a Nice, onde pegaria um avião para Paris. Receando perder o voo, acelerou em demasia, apesar da chuva intensa. De repente, perdeu o controle do veículo, embatendo num sinal de trânsito, à saída de Villeneuve-Loubet, a 10 quilómetros do aeroporto. O carro capotou, rolou alguns metros e explodiu.
Testemunhas declararam ter visto a motorista tentando escapar do Renault, sem conseguir abrir a porta. Quando os bombeiros dominaram as chamas, o corpo esbelto da vítima, manequim da Christian Dior, jazia carbonizado no interior da carcaça ainda fumegante. A polícia só a identificou a partir de fragmentos de um livro de cheques, de um diário e da carteira de habilitação. Seu nome era/é Françoise Dorléac, nascida em Paris, no dia do equinócio da primavera de 1942.
France tinha pressa, muita pressa em chegar a Orly. Não podia falhar a conexão para Londres. No dia seguinte esperava-a uma longa jornada de trabalho. Na agenda estava a conclusão de sua participação em Billion Dollar Brain, de Ken Russell, uma convencional fita de espionagem. A Solange de Les Demoiselles de Rochefort, de Jacques Demy, planejava ficar mais um tempo na capital inglesa, promovendo a estreia deste filme que, em definitivo, a credenciou junto do grande público e da crítica.
Quando, nos anos 80, encontrei Demy no Festival de Avellino (Itália), consegui ser muito sincero com ele. “Sem desprimor por Lola ou Les Parapluies de Cherbourg, a fita sua que mais me agrada é Les Demoiselles de Rochefort, muito por “culpa” da Françoise Dorléac. Aquele desastre… Françoise era uma atriz fascinante…”
Um sorriso tímido, porém sincero, se acendeu espontâneo nos lábios carmins do autor de Peau d’Âne. “Na verdade, ela era especial. Uma profissional dedicada, uma ótima companheira. Não era só uma mulher bonita. Sendo mais preciso, a France é e será sempre uma talentosa atriz. Não é apenas a irmã da Catherine, tragicamente desaparecida, quando caminhava para o apogeu..”
Uma camélia rosada
Filha de atores, Françoise tirocinou em produções um tanto triviais. Após esse aprendizado, obtém um papel mais exigente na comédia dramática Ce Soir ou Jamais, dirigida por Michel Deville. Sua Danièle agradou tanto ao criterioso Philippe de Broca, a ponto de ser escalada para encarnar Agnès, noiva de Jean-Paul Belmondo em L’Homme de Rio, um filme de aventuras com locações no Rio de Janeiro e em Brasília.
Entremeando produções de cariz comercial com filmes de vocação artensaística, sua breve carreira de sete anos e 16 longas atinge o zênite sob a direção de Demy, François Truffaut e Roman Polanski.
A empatia gerada entre Françoise e François torna Nicole Chomette, a aeromoça de Peau Douce, sua mais memorável prestação, que estende bons auspícios para a composição da sensual e divertida Teresa de Cul-de-Sac. Um exercício virtuoso de um tempo em que Polanski ainda conseguia ser um autor alternativo.
Alguns anos depois, num depoimento soando a epicédio, Truffaut contou que todas as vezes que lhe escrevia, colocava no sobrescrito “Mademoiselle Framboise Dorléac”. Na certeza, acreditava, que ela leria a carta sorrindo.
“Suas entrevistas eram ricas em aforismos exigentes sobre a vida e sobre o amor. Podia lançar sobre alguém de quem desconfiasse, um olhar subitamente muito duro. A vida ainda não a curtira, a indulgência viria mais tarde”, sublinharia um nostálgico François.
Sem dar chances a dúvidas, o diretor francês Emmanuel Laurent observa que Peau Douce é um presente de amor para Françoise, pela maneira como Truffaut a filma. “Ele a seduz com a câmera”.
Se ambos fossem vivos, François imaginaria presentear a atriz amada com uma corbeille de camélias. Foi essa a homenagem que Catherine Deneuve prestou a 15 de outubro de 2010, dia em que se apresentou em Courbon, uma deslumbrante variedade de camélias, batizada com o nome da irmã menos nova. Híbrida, a flor resultou da fusão da Camellia sasanqua ‘Crimson King’ e da Camellia oleifera ‘Jaune’. O fruto desse enlace é uma flor em tons rosáceos, onde vibram estames amarelos. No ensejo, Catherine comentou o simbolismo desse ato: “Dar a uma planta o nome de alguém que amamos é um tributo eterno e muito reconfortante.”
Passadas cinco décadas sobre seu súbito desaparecimento, a flor plantada por Françoise nos ecrãs continua prenhe de viço, frescura, aroma, seduzindo os cinéfilos disponíveis para afagar a pele doce dessa framboise, colhida de uma Nova Vaga em terna e eterna preia-mar.

Danyel Guerra é natural da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro (Brasil).Tem uma licenciatura em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Escreveu e editou os livros 'Em Busca da Musa Clio' (2004), 'Amor, Città Aperta' (2008), 'O Céu sobre Berlin' (2009), 'Excitações Klimtorianas' (2012), 'O Apojo das Ninfas' e 'Oito e demy' (2014). No prelo está 'O Português do Cinemoda' (edição Douro Editorial).