Caio Junqueira Maciel


Algum velho leitor de poesia há de se lembrar de que esse título é uma paráfrase do título do primeiro livro de poemas do mineiro Adão Ventura (1946-2004): Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul. Belo e estranho título, a assinalar uma poética de tons surrealistas que, ao longo do tempo, converteu-se numa dicção mais arejada, realista, de grande contundência social e vigor da linguagem.
Em Portugal, lendo alguns poetas da terra, tomei conhecimento da poesia de Jorge Vicente, através da revista eletrônica InComunidade. Solicitei-lhe que me enviasse meia dúzia de poemas, uma forma não sei se recomendável de conhecer um artrópode pelas suas seis perninhas. Uma abelha a produzir mel, assim vejo o poeta, em seu ofício, nem sempre marcado pela doçura. Aliás, uma vez escrevi um acaipirado epigrama que dizia “zabêia zune no zovido/ puesia devia sê a gostosura do mé”.
Um dos textos do Jorge Vicente, até então inédito, diz o seguinte:
“no caminho das uvas
responde o deus descido
ao apelo das romãs:
alegrai-vos,
que as gazelas voam como estrelas
no céu aberto das minhas mãos.”
Vê-se o frescor atemporal da poesia lírica. Um leve tom bíblico, que me leva a evocar os eróticos seios da amada, filhos gêmeos da gazela dos Cantares de Salomão, tocado pela preciosa verdade suprareal do poético, elevando o que é pedestre aos céus, conferindo ao homem o prodígio da criação. O caráter amoroso da poesia de Jorge Vicente também pode ser observado de forma mais evidente no poema a seguir, que foi publicado em 2017, na revista “gueto”:
“perdoa, meu Amado,
a minha ternura:
um pouco de desejo fresco
um rio sempre muito grande
e braços e pernas e árvores
e ordens amorosas de sentido
perdoa se traí o amor a vida
e o poema:
o amor estreito entre duas aves
ou entre dois corpos
ou entre duas palavras
no intervalo de um fruto
perdoa se entre o dia de ontem
e o de amanhã
naveguei entre dois cavalos e duas
fascinantes palavras
esta arte da fome e da ambição
que entre flores nos comove.
Uma poética contida a expressar paradoxalmente a fúria da ternura. Chega-me à memória o soneto “Quarto em desordem”, de Carlos Drummond de Andrade, a falar de um “cavalo solto pela cama a passear o peito de quem ama”. Em Jorge Vicente, a arte de amar viceja na arte de compor, harmonizando linguagem, corpo e natureza. Se Drummond falava em desordem, aqui há uma ordem dos sentidos, juntando-se a elementos heterodoxos, mas daí provocando cintilâncias. A cintilação, proveniente da força ígnea do corpo e da combustão de forças insabidas da poesia ctônica, da escura terra, é exemplarmente destacada e instaura amanhecências no texto a seguir, para mim, o mais belo dos poemas desse autor, que o publicou em em teoria do movimento, em 2014:
“hoje escrevo
e há um rebentamento dentro da pele
sílabas formando-se
amanhecendo o sangue
retocando o sangue
recriando-o dentro
de uma nova linguagem
as palavras só podem ser iguais
aos pássaros e iguais a todas as
coisas:
são reais, podem tocar-se com os
dedos, podem subverter, caminhar
entre os bisontes
[se ainda houver animais que possam
amanhecer de terra escura]
as palavras não são as palavras
não se encontram dentro dos livros
senão no ritmo cenestésico de braços
e pernas, órgãos vitais, força
ígnea do corpo
as palavras não lembram
nem têm a presciência dos mundos
apenas o assombro, claro e cintilante,
do que pode ser agora.”
Ferreira Gullar costumava associar revelação poética a um relâmpago. E Manuel Bandeira falava em alumbramento. Poesia é também assombro, há bisontes em seu horizonte e o que pulsa na pele prodígios impele. Ocorre-me novamente Drummond, com aquele instigante “Áporo”, a falar da raiz e minério num labirinto que se desata, desabrochando a orquídea-poema. O poeta, qual inseto que cava sem alarme, congrega sílabas na arcaica lavoura de apascentar enigmas.
Em a noite que abre, de 2016, Jorge Vicente nos exibe um poema em prosa, de feição metalinguística, em que se nota também o jogo entre luz e sombra, noite e cintilação, existência e linguagem. Corpo e natureza, aqui associada a pedra, esteva e pássaro, constituem uma escritura em chamas, impregnada de vida:
“a noite abrir-nos-á naquilo que vomita. naquilo que fere. naquilo que fica depois. é assim tudo o que transcende a sombra. aquilo que ela representa. o múltiplo de dois. a essência vestida ao contrário.
amanhã, acordarei e escreverei um poema onde possa dizer: alimenta-me de silêncio e escreve-me um poema sem palavras. iremos juntos ao cinema e abrirei o véu da tela para que possas descortinar o céu atrás das ruas da cidade. os olhos serão pedaços de chamas deitados na pedra-mármore ou na escrita-papel. não há ruas que possam existir se não puderes abandonar a escrita e chamar pelo meu nome. a sombra só será verdadeira se o poema for o único modo de existir.
não é. a sombra é tudo aquilo que não conseguimos dizer pelo corpo. a roda. a ciranda dos pássaros. a beleza da esteva em noite de caminheiros: tudo isso existe sem que a palavra alimente.”
Creio que foi a partir desse poema que me veio à lembrança o primeiro livro de Adão Ventura, com um ritmo intenso estabelecendo a sobreposição da fanopeia ao significado da palavra. Pois eis que há aqui uma lúdica atividade de cerzir o texto com o crepitar do som e silêncio. Há, nesse texto, a curiosa imagem do desvelamento de uma tela do cinema para que se descortine o céu atrás das ruas da cidade. Poesia, em sua aparente inutilidade, presta-se a isto: dar a ver. A propósito, foi exatamente na “revista inútil”, em 2009, que Jorge Vicente publicou este poema, também na esteira da metalinguagem, expressando o dilaceramento da hesitação entre som e sentido:
“o poema proclama como quem grita:
amanhecer de peles,
tômbola de flores,
unha carne raiva por descobrir
já sei que a palavra não diz nada
mas as pedras permanecem na
promessa da voz.”
O lúdico alinha-se ao motivo da rosa e está prestes a explodir no tumulto “unha carne raiva” para gerar o que se oculta em pedra na promessa de voz. Ai também encontramos a senda do amanhecer, ação inaugural de cada palavra sob o signo da poesia. E, no breve e belo poema inédito a seguir, nos deparamos com um verdadeiro idílio, em sua etimologia grega de “pequeno quadro”, em que se inscreve uma figura mítica a construir a linguagem que abastece os que sabem voar:
“o meu pequeno deus doméstico
ininterruptamente escrevendo na argila:
constrói uma pequena linguagem que
possa alimentar os pássaros.”
A fluência da escrita poética é algo como um rio selvagem a correr no território doméstico, o que configura a notável ambivalência própria do que chamamos de um bom poema. Todo pequeno grande texto é criador de tensões. Na fragilidade da argila há sua força, o poeta é Prometeu que molda na argila o futuro ser humano, para o qual roubará o fogo do Olimpo e terá seu fígado devorado pela águia. Porém, invertendo o mito, em Jorge Vicente a poesia é aquela que nutre e é dela que se pode deduzir o pássaro.

Caio Junqueira Maciel é brasileiro (Cruzília, MG), poeta, ensaísta, letrista musical, contista, atualmente morando em Braga.