Cláudia Cassoma


Os natais cá em casa começavam nos dias primeiros do mês e dançávamos até ao sexto dia do ano subsequente em que celebrávamos os nossos tocaios. Víamo-la a trazer sacos que mal conseguia carregar e a levá-los ao quarto que só era segurado com tranca durante aquele mês.
Mamãe era Papai na véspera. Dos furos das nossas portas, assisti, várias vezes, o leve assentar dos presentes à árvore de natal que com ela decorávamos. A única estrela que há anos compramos, isso ao meu primeiro aniversário, era posta no seu cimo e brilhava como se fosse mesmo um dos presentes dos magos. Na noite que antecedia o tal dia, ela andava na ponta dos pés e quase sem respirar, só para que não a víssemos nem a ouvíssemos, e plantava no perímetro do arbusto adornado com vermelho o que supostamente viria de muitos remetentes; até do genitor. Só que não! Em hipótese alguma, dos matos de Portugal, vieram presentes tão bem pensados e cheios de sentimento. Cartas escritas com pena e raiva. Pena da pessoa que o governava, que no fundo era ele mesmo, e o impedia de voltar sem que o tal trabalho terminasse. Oh santo ofício de ébrio! E a raiva era pela distância que ele mesmo traçou e que supostamente o enfraquecia. Até os segredos da minha mente parecia conhecer pela minha soniloquência, mas isso só Mamãe podia saber, pois só a sombra dela via quando, no meio da noite, meus olhos abriam. Esse ser, que supostamente sabia tudo sobre nós e se preocupava, não era ele, nunca foi. E, pelo menos eu sabia.
Durante o tempo que a terra levava para completar a sua volta em torno do Sol poderíamos carecer muito, menos o natal. Poderíamos ter experimentado um ano íngreme, mas o natal nunca nos foi penoso. Nunca!
Volta-me à memória o primeiro dia em que a desvendamos. Trazia nas curvas africanas calças vermelhas com detalhes brancos, cinto largo de fivela, chapéu a combinar e botas pretas. Ela era mulher de crer profundamente. Falava com olhos brilhosos e corpo jubiloso, era cheia. Lembro-me das suspeitas que o Gaspar levantou contra esse ser que supostamente levava-nos presentes todos os anos e, as vezes, sequer conseguia levar-nos pão. Naquele dia quase gritou. Não sei o que pensou dizer pois cobri-lhe a boca antes que proferisse. Porventura fosse por parecer mais magro que a descrição dos livros dos mindele ou talvez por trazer melanina tal como a abandonada ao terceiro rebento pelo nosso gerador de células reprodutoras. Mas a longa barba branca iludiu-lhe a vigilância. Gaspar nunca o tivera visto, então não foi difícil despistá-lo. Eu já sabia que era a Mamãe, mas ele não; nem ela sabia que eu sabia. Para todos os efeitos Papai Noel nunca se esqueceu de nós. Até que um dia o fez!
Éramos apenas os quatro e sempre foi suficiente. O calendário era posto na porta do frigorífico precisamente no último dia do mês precedente. Éramos felizes e sabíamos. Mamãe sempre fez questão de relevar. Vêm-me à lembrança os ornamentos de papel que fazíamos nas segundas semanas das festividades, de acordo com o impresso que só
trazia os dias de um mês e mais seis. A nossa árvore de natal era, em todo tempo, decorada do mesmo jeito e nunca esteve tão cheia também, mas sempre foi efetivamente natalícia. Antes mesmo do nascimento do Gaspar, já sabíamos o exacto lugar de cada enfeite.
Nós que só gostávamos de dormir depois da chegada do sol ao nadir, gostávamos de passar as noites a jogar aos jogos eletrônicos; pelo menos tentávamos, mas Mamãe nunca deixou. Isso só acontecia na véspera mesmo. Comíamos o que fosse, quando tivesse e, punhamo-nos de joelhos ao pé dos presentes, ansiosos para os abrir. Mamãe recitava-nos belas palavras e prosseguia com as entregas. Cada ano aprendíamos o nome de um tio diferente; só nome mesmo, porque rosto nunca vimos. Ainda acho que ela se esquecia das mentiras antigas, mas longe mim acusá-de de trapaceira. Recebíamos os presentes, alegres, abríamo-los, com espanto misturado de prazer, os considerávamos, e logo Mamãe nos levava à cama com seu belo narrar da história de natal. Os natais lá em casa eram felizes. Até que um dia deixaram de ser!
Papai Noel chegava com braços cansados e mãos endurecidas pelo pesar dos presentes. Mergulhava nos lagos da sua exsudação e vinha assim mesmo. Ele sempre nos amou demais, mas de mim precisou mais. Ignorei o desapertar do seu fato, desde o ano antes do passado, por tal, não teremos o próximo. No último natal eu vi como se apresentou mais magro, como veio mais adinâmico, mas nunca pensei que fosse isso.
Papai Noel vinha numa única noite e voltava logo de seguida, mas sua volta nunca foi tão buliçosa, nem sua vinda tão certa de não mais ser.

Cláudia Cassoma é jovem angolana, nascida em Luanda, mergulhada na arte de escrever desde tenra idade. Música, canto, teatro, dança, foram (são) outros dos seus devaneios; hoje, além de estudante, amante das letras e dos menores, vive crendo que "o voluntário ajuda quem precisa, contribuindo para um mundo mais justo e mais solidário", e dedica qualquer hora vaga ao trabalho social. Entre as coisas que lhe alegra fazer está a edição do seu blogue; visitar www.claudiacassoma.com é garantia de conhecer melhor esta emergente escritora.