Casé Lontra Marques


1
Não quis reunir no colo as letras do grito, como se colecionasse gravetos para, debruçado na terra pobre, confeccionar um facho de fogueira onde queimar, no calor cujo corpo recusa qualquer conforto, um naco de carne amarga, dedicada aos dentes que sobraram na boca ruidosamente sossegada; não quis reunir no colo
as letras do grito porque, na fresta entre os silêncios que assediam algum sentido com sílabas que ignoram a utilidade de continuarem caladas, havia um estilhaço de vidro, aceso de sede, tão breve
quanto o farelo de luz pendurado — por um fútil
fio — nos lábios da saliva que aflorara
em ferida. Quando o joelho tocar o cascalho do sono, com o sangue ainda calmo, improvisando um precário chocalho, isso não consagrará uma morte; nem um intervalo; nem um descanso; pois não haverá corte: o joelho, no estofado de cascalho, estenderá uma desordem — sem a pressa
de um pânico desnecessário, sem a lentidão
de um cuidado assustado — próximo, quem sabe, das engrenagens que o vento inventa para talhar os próprios atalhos. Depois de se erguer de uma queda seca, um cão veio beber a memória
do meu rosto. Por enquanto, guardo, no atrito
provocado pela língua, um vestígio, imperceptível, de fogo: por enquanto, não me movo — nem durante uma risada rala — do pouco
que apreendo dos cães que se desprendem
da sua carcaça. Carrego
a dor que amanheceu nos olhos, por mais
que envergue a árvore de onde colho,
como a um pomo,
a mão que planta os meus passos.
2
Em vez de expulsá-la das órbitas, pretendo
prorrogar
sua presença; contra as migalhas
de paralisia que
se acumulam
na camisa, habitarei — de outra forma —
esta hora: mesmo
que presencie, em mim, alguma viga
a ruir. Ao velar
minha
dor, ainda mastigo —
junto
às suas cinzas —
um punhado
do pó expelido pelas
fábricas
que emergem, no horizonte,
alavancadas
da água. Interrogar
esta obstinação
será destecer o peso
que impõe
à vida uma aniquilação
tediosamente
consentida, apesar
de não
se saber dissolver
os dedos
que dão de
comer
à quietude
a crescer
sobre outro
dia — o peso
de
acreditar ser
preciso
aceitar
uma fragilidade
mais
vasta
que a voz diária,
mais
veemente
que a paisagem
desdobrada
pela
respiração
dos animais
que
se sujam
no chão
da enchente.
3
Escolherei um nome para os destroços mantidos no tremor
dos braços, enquanto
restauramos caminhos soterrados na lama perfurada
por veredas que fincam — na medula do leito —
estacas sólidas, porém
esquálidas; não procuro, no entanto, um nome
inédito — tanto mais ávido
quanto mais estéril; escolherei
um nome para
os destroços — um nome que saberei
viver — sem
conseguir, contudo, articular sua urgência.
4
Passa outra noite pelos pontos onde
tombaríamos
com a cabeça despejada
sobre a nuca,
num
exercício
que desenvolveríamos próximos
do apuro
de uma pétala
decepada;
nossa noite — aquela que
conhecemos,
apesar do que
ainda
não tateamos;
aquela
que esquecemos,
apesar dos fatos
que
fundamos — nos inunda
até
a cintura: é uma noite
imóvel,
instalada
contra a imensa
água
que nos arremessa
a uma
nova
voragem. Movendo a língua
pela cavidade
da boca, brinco
com a areia
que não quero
na garganta. Mas não repudio
a destruição
nem
o desespero — cultivo,
mesmo
que atordoado,
o desprazer — não o desprezo: diante
da voracidade,
penso
nos órgãos
retalhados; penso —
distante
de estar exausto —
nos ossos
assolados
por
uma fácil
insolação. Destino
ao
pensamento o risco
de um nascimento
físico — consolidando
— nos gestos
do corpo — uma pulsação
de acesso
tanto à sutileza
quanto
ao excesso. Quando
descritos
como legião, iniciamos
outro ciclo
de desabrigos: nossa
imagem
desliza — inutilizando,
desse modo,
a comparação — por resíduos
que não conduzem
nem
ao conflito
nem
à exclusão. Sua subsistência
não deslumbra,
da mesma forma
que
a fome (a fome
que inaugura
uma nova
fúria,
uma
fúria alerta)
não deslumbra —
mas
consome
os coágulos
que
apodreceriam
(calcinados
pelo
cansaço)
no
interior
dos passos, antes
que se fundisse — com
os metais
da
desolação — o organismo
a ser
oferecido aos rios
que
a fuligem
acomoda
no
meio de
outros
desperdícios.

Casé Lontra Marques nasceu em 1985. Mora em Vitória (ES). Publicou Movo as mãos queimadas sob a água, Saber o sol do esquecimento e Mares inacabados, entre outros. Reúne o que escreve em caselontramarques.blogspot.com.br.