Alilderson de Jesus


De uns tempos para cá, todo ano, como quem cultiva uma tradição, acompanho a entrega do Nobel. Como quem deixa o melhor para o final, fico atento às premiações a químicos, economistas, médicos, físicos, até o anúncio da distinção mais importante que é a que laureia escritores e poetas.
Para minha surpresa no já finado 2016, o vencedor do prêmio, que em algum momento escapou das mãos de João Cabral de Melo Neto e de Borges, tendo ainda sido recusado por Jean Paul Sartre, é um famoso cantor e compositor pop. Talvez dedilhar uma guitarra tenha contado a seu favor.
Fato é que o estadunidense Bob Dylan pode dormir no mesmo panteão ocupado por um Eugene Montale e Pablo Neruda, entre outros. Isso porque a academia sueca crê que as canções de Dylan constituem uma obra poética. Cá para nós, que ninguém nos ouça, a conclusão a que chegam esses doutos, vale no mínimo uma discussão. Acontece que tanto os fãs de Bob Dylan, quanto os do relativismo rechaçam tal exercício. Descubro a duras penas que não só axiomas são monolíticos, ideias fixas e paixões também. Uma delas (ideia fixa ou paixão?), é de que poesia e letra de música são a mesma coisa. Sendo eu alguém refratário a axiomas, levei a discussão a esse respeito ao espaço de vale tudo (ou MMA, que é mais moderno) do facebook. Como é comum em searas virtuais, fui incompreendido. Dois respeitáveis admiradores do compositor norte- americano, “perceberam” no meu discurso uma insensibilidade ao talento de Dylan. Ou mesmo uma ignorância sobre o valor de sua obra. Nem uma nem outra coisa estava em questão. Como não estaria em questão a qualidade de ou talento de um pintor, a quem a academia resolvesse premiar levando em consideração os traços poéticos e bom equilíbrio das cores praticado por esse meu hipotético artista. Eu apenas creio que um prêmio literário deve privilegiar escritores e não grandes vendedores de discos, ou pintores ou arquitetos. A concorrência desses com pessoas que se dedicam exclusivamente a escrita parece-me desleal. Digo isso reconhecendo os possíveis méritos do agora bardo estadunidense. Ocorre que ao premiar uma celebridade da música, o Nobel lança luzes sobre si e não sobre a literatura.
Alguém poderá me interpelar dizendo: como você se atreve a dizer que as canções de protesto do ilustre recém-nobelizado não são literatura? Essa é uma outra discussão que dá um texto à parte.
Mas não é nem essa e nem aquelas outras questões que me trazem aqui e sim um sincero desejo de agradecimento a Bob Dylan pela lição que me deu a respeito do prêmio que lhe foi entregue. A lição não é fruto de um mergulho nas composições do letrista em questão, mas sim de uma mirada descompromissada à postura de Dylan ao receber o Nobel. Dois dos agraciados na história recente da premiação, prosadores de lados opostos do ringue ideológico, a saber Mario Vargas Llosa e José Saramago, imediatamente se pronunciaram e agradeceram a honraria. Mesmo esse último tendo dito que o Nobel não tem importância. Bobby Dylan, pelo contrário, manteve um constrangedor silêncio, que irritou seus fãs da academia sueca. Um deles chegou a chamá-lo de arrogante. Cheguei a pensar que, pegando carona na moda brasileira, a academia destituiria o compositor estadunidense do cargo de literato, propondo outro nome do showbusiness.
Mas a postura de Dylan não me pareceu arrogante. Pareceu-me consciente. Dylan sabe o que até então eu não sabia. Ele é mais importante que o Nobel. Se não vejamos, quantos sabem a respeito da famosa premiação? E quantos sabem quem é Bob Dylan? Não fiz nenhum censo, todavia se tivesse que apostar, jogaria minhas fichas no norte-americano.
No final das contas, Dylan tratou o Nobel como alguém como eu ou outro qualquer deveria tratar: como mais um prêmio destituído de aura como qualquer outro em nosso mundo capitalista. Afinal sendo destituída de aura própria, qualquer coisa no capitalismo pode ter sua aura concedida por ele, capitalismo.
Quando deu fim a seu silêncio, o compositor fez os agradecimentos de praxe, mas tratou de salientar que iria receber a distinção caso não tivesse algum compromisso. Provavelmente um show que lhe renderia muito mais que os quase um milhão de dólares que vem junto com o prêmio.
Dylan não foi à cerimônia do Nobel. Patti Smith, muito emocionada, substitui-o. Se agiu com simpatia, creio que a próxima cerimônia será para ela. Isso se ela for e não mandar o Bob Dylan em seu lugar.
A questão é que, ao meio que esnobar o Nobel, Dylan cumpriu uma função que é imperceptível para seus fãs e para imprensa, surpresa com o prêmio, mas muito feliz com a consideração ao cantor. Dylan colocou o nobel em seu devido lugar: na prateleira de certa insignificância charmosa. É possível, portanto, que algum grammy (ou alguns grammies, lá sei eu) tenha tocado muito mais o coração do artífice.
Outra coisa que Dylan pode ter me ensinado é que ser concebido como um poeta por uma instituição acadêmica é menos importante até do que já o ser pelos que compram seus discos e gritam seu nome. O desejo da Academia de colocá-lo no lugar de um literato não o comoveu tanto assim, porque a anuência de quem lhe interessa para ostentar o título de poeta já foi há muito concedida pelos que possibilitaram a ele fama e fortuna. É como se ele dissesse a seus consagradores da Academia sueca:” Vocês precisam mais de mim do que eu de vocês.” E nisso Dylan está coberto de razão.
Alilderson de Jesus: Doutor em Literatura Portuguesa - UFRJ