InComunidade

Segunda dose

Desde que parei de beber não aguardava uma segunda dose com tamanha ansiedade. A dependência etílica tem lá suas peculiaridades. Geralmente chegamos aos bares ávidos, pedimos trêmulos o primeiro gole. Um velho amigo, companheiro de noitadas, dizia ser o copo inicial necessário apenas para regular a marcha lenta. A metáfora era apropriada, fazia referência ao motor dos automóveis mal ajustado. Caso não fosse feito o reparo na máquina, ela ficaria soluçando, tropeçando como se fosse parar. Assim acontece com os viciados. Até entornarmos o trago de estreia, ficamos sôfregos, bambos, totalmente atordoados. Viramos o dito cujo sem pensar, sentir o gosto, estabanados, é como um remédio. Para viver a magia do momento. Nos recompomos firmes e quase normais. O segundo sim é outra coisa! Sentimos o gosto, saboreamos, talvez o único a valer a pena. Os outros, na sequência, servem apenas para nos fazer esquecer. De nós próprios, dos outros.

 

Pois bem, tomei ontem a segunda dose da vacina. Coronavac, feita no Butantan. Houve certa dose de patriotismo no ato, embora considere ufanismo o último refúgio dos imbecis. Sou um pouquinho, mas não muito. Agora, teoricamente, minhas chances de chegar vivo ao final da pandemia estarão, após as duas semanas protocolares para ficar totalmente imunizado, aumentadas. Não pensem ser o cronista muito apegado à vida, ter medo da indesejada, querer seguir em frente eternamente, como se dormisse em berço esplêndido. Contudo, ainda tenho alguns planos, e não sou afeito a deixar coisas inacabadas. Seria conveniente concluir textos, saldar dívidas. Melhor evitar gente falando mal de mim depois da partida, prefiro deixar as contas arrumadas, até para respeitarem o simpático defunto que pretendo ser.

 

A burocracia estabelecida para que nos aplicassem a injeção estava malfeita. Dependia, no caso, de um funcionário preguiçoso, sem a menor disposição para trabalhar. Ele demorava-se preenchendo a ficha, cabeça inclinada e mordendo a língua, esquecia-se olhando para ontem, devia ter algum problema ou cognitivo, ou de próstata, já que fugia repetidas vezes para o banheiro. Assim, aquilo normalmente simples, rápido, sem necessidade de maiores delongas, complicou-se. Houve a tão prejudicial e arriscada aglomeração. E como somos um povo pusilânime, raramente nos manifestamos exigindo nossos direitos, tudo correu com o ritmo assim mesmo:  lento. Paciência! 

 

Sentado, não muito feliz com o andar da carruagem, distraí-me ouvindo a conversa de duas senhoras. Um palavrão deixou-me, a princípio, curioso. Uma delas afirmou em voz alta, maus bofes:

– Puta que o pariu, detesto sair de casa!

 

Olhei-a com ar de censura. Desagradam-me os nomes feios ditos raivosamente, xingamentos. Uso-os apenas quando são insubstituíveis, coloquialmente, na paz. Felizmente ela não notou minha reação extemporânea, de quem cuida da vida dos outros, inconveniente. A idosa ao lado, mais humilde, respondeu:

– Eu, pelo contrário, estou feliz. Bom poder ver gente, estar trancada em casa tem me deixado triste. Odeio a solidão.

 

A impaciente não deixou por menos:

– Quando estiver aborrecida e sozinha, vá cuidar de uma planta no jardim. É excelente terapia.

 

– Que jardim? Depois que meu filho faleceu fui morar em um apartamentinho pequeno. Questão de segurança. Em casas roubam a gente quando descemos do carro.

 

– Então fique sozinha e protegida! – disse a boca rota, elevando o tom.

 

Escutei o número de minha senha. 

 

Na saída a senhora solitária continuava em seu posto. Agora sozinha. Somei a minha alegria de recém-vacinado à dela. Devia estar exultante com tanta espera, burburinho, oportunidades de interação. E eu que me dou tão bem comigo mesmo, há gosto para tudo na vida, muito sobre o concordando com a mal-humorada, vislumbrei um belo jardim em meu destino.

 

Maio/2021

 

Ricardo Ramos Filho é escritor, com livros editados no Brasil e no exterior.  Professor de Literatura, mestre e doutor em Letras pela USP. Ministra cursos e oficinas, trabalha como orientador literário. É cronista do Escritablog e da revista InComunidade.  Presidente da União Brasileira dos Escritores (UBE), São Paulo. Como sócio proprietário da Ricardo Filho Eventos Literários atua como produtor cultural. Possui graduação em Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1986).

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