Cultura

Parrésia | Lindevania Martins

– Havia um muro no meio do caminho

 

Ivone olhou de um lado para o outro. Depois baixou a cabeça. O muro lhe impedia de continuar a fuga. Nos pés, via os tênis sujos pela corrida desenfreada. Os que a perseguiam, se aproximavam a passos rápidos. Um homem apertou seu braço, obrigando-a a virar de frente: “Você fala demais”.  Uma mulher a empurrou: “Não venha dizer que o gato comeu sua língua!”. Ivone caiu no chão. Alguém zombou: “Como teve coragem de falar aquilo? Repete!”.  

 

– Corte 1

 

Parrésia. Substantivo feminino. Termo grego. Geralmente associado ao nome do filósofo Foucault. Significa falar com franqueza mesmo ante o risco de desagradar o interlocutor. Como algumas doenças gravíssimas, pode ter consequências catastróficas. E tem. Sócrates não morreu de parrésia, acusado, entre outras coisas, da corrupção dos jovens? E Giordano Bruno? Vítima de parrésia, foi atirado na fogueira, como incentivador de ideias heréticas e defensor da existência do infinito: “Nós declaramos esse espaço infinito, dado que não há qualquer razão, conveniência, possibilidade, sentido ou natureza que lhe trace um limite.” (Giordano Bruno, Acerca do Infinito Universo e Mundos, 1584). Em “O Dicionário Kazar”, de Milorad Pávitch, cegos inscreviam em cada pálpebra da Princesa Ateh letras que a protegiam dos inimigos durante o sono e que formavam um um alfabeto mortal: matavam depois de lidas. Tal como as letras das pálpebras de Ateh, é possível que a parrésia conduza à morte se pronunciadas verdades reprimidas. 

 

– Via Alternativa

 

Ivone jogada ao chão, um baixinho careca, feliz com a possibilidade de machucar uma mulher que não conseguia revidar, se juntou ao grupo e perguntou: “O que foi que ela disse mesmo?”. Alguém respondeu: “Algo como isto não é um cachimbo”. Uma voz irada: “Falta só ela repetir pra gente acabar com a raça dela!”. Um bêbado apareceu com uma garrafa na mão e propôs que a embebedassem, com uma voz trôpega: “Aposto que ela repete rapidinho!”.

 

– Corte 2

 

Dizem que o vinho faz falar a verdade: “In vino veritas”. Em sua fase inicial de consumo, o álcool altera comportamento e a percepção, produzindo relaxamento, desinibição e afrouxamento do senso de perigo. Há quem diga que um cálice de vinho tinto por dia faz bem à saúde. Contudo, e se a pessoa relaxar demais e se meter em risco por parrésia? “Pai, afasta de mim esse cálice”. 

 

– Um Desfecho Deus Ex-Machina

 

A ambição maior de Ivone sempre fora a verdade. Então, quando o homem  se debruçou sobre ela com a garrafa na mão, ela levantou, balançou os braços e de cada dedo da mão despontaram garras metálicas e afiadas. Seu corpo era o de uma heroína mutante. Avançou sobre os opositores esticando seus dedos metálicos. Eles recuaram. Ela retirou do bolso um mapa do país e lhes mostrou, repetindo o que dissera antes:  “Isto não é uma democracia!” Assombrados com o que acabaram de ouvir, eles levaram as mãos às cabeças e desesperados enfiavam os dedos nos ouvidos como se as palavras os invadissem e os queimassem por dentro. Em seguida, como aqueles que liam o alfabeto mortal nas pálpebras da Princesa Ateh, sucumbiram às palavas que em seu mundo não deveriam existir.

 Lindevania Martins é graduada em Direito , Mestra em Cultura e Sociedade e  Mestranda em Direito Constitucional. É defensora pública de Defesa da Mulher e População LGBT. Poeta e prosadora, possui quatro livros publicados: “Anônimos” (2003), “Zona de Desconforto” (2018), “Longe de Mim” (2019) e “Fora dos Trilhos” (2019).  

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