Cultura

Ouve | Inês Botelho

E a rua inclinava-se numa vertigem e os pés assentavam-me bambos, quase apenas de fugida, no fundo voavam, percebes, e não conseguia parar, ia cair, a rua pusera-se tão longa, o declive tão mais abrupto do que devia, desequilibrava-me, aliás empurrava-me, e eu ia precipitada, a margem a acelerar na minha direcção, cada vez mais próxima, o rio mesmo ali, sem barreiras, sem nenhuma grade, só o empedrado, a ponte, as águas convulsas e as algas que me esperavam e acordei.

 

Assim mesmo.

 

De um momento para o outro.

 

Estava num autêntico descompasso. Sentia-me toda acelerada, fria, completamente fria, o pijama peganhento, as costas molhadas de suor, veio-me uma memória tão forte. Parecia que tinha voltado à infância. Nossa, ainda me lembro como se fosse ontem. Eu era uma criança minguada, sabes, escanzelada como uma palha, calada, e sempre com as noites atulhadas de pesadelos. Ficava encolhida na cama, uma bolinha miserável, Santo Deus, e nem o peso dos cinco cobertores me desfazia o gelo. O quarto também não ajudava, húmido, com o ar sempre estagnado, uma pessoa até sentia a temperatura a rasgar a respiração. Só de pensar vem-me azia, havia lá de conseguir pegar outra vez no sono, e logo naquele dia, além do mais o relógio dizia cinco e quarenta e sete. Tenho a certeza, cinco e quarenta e sete certinhas.

 

Alguém me contou uma vez que há uma frase de um tipo qualquer sobre serem sempre três da manhã nos nossos piores momentos. Algo assim. Provavelmente uma dessas frases que aparecem na internet, daquelas sabedorias da treta que muito boa gente partilha. Enfim, a história das três da manhã ficou-me, o que queres que te diga, tocou-me no ponto, mas ninguém me tira que o diabo vive é nas cinco da manhã. Demasiado cedo para iniciar o dia, demasiado tarde para ainda se conseguir algum sono de jeito, fica-se ali em tensão a prever o despertador, juro-te que às vezes até ouço os segundos em contagem decrescente. E depois há aquela quietude toda, começa a teimar-se nas coisas. Eu começo. E de repente estou cheia de fantasmas, o que nunca fiz, os erros, os infortúnios e os precipícios que se aproximam ou podem se calhar surgir mais as dúvidas e uma série de hipóteses estúpidas e feias que nem sequer entendo porque é que me vieram à cabeça. A sério, as cinco da manhã são o silêncio das nossas falhas e loucuras ali a escarafuncharem. Não ia de maneira nenhuma continuar deitada.

 

E acordava o Jorge para quê? Para em vez de um sermos dois mal dispostos logo antes do dia começar? Não. Precisava de pôr-me a mexer, de endireitar as ideias. Já tinha a mala pronta portanto, olha, fui fazer café. Não há melhor espanta-espíritos do que um café bem forte e preto. E se a coisa não for lá, um segundo café em cima e ponto final parágrafo.

 

Acredita, resulta de todas as vezes. Acaba com as palermices num instante. Uma coisa quente assim a cair-nos no corpo, com o amargo certo, vais ficar a matutar em quê? Pões-te a andar para a frente, isso sim.

 

Dei-me uma chuveirada num repente e ainda o Jorge fazia a barba e já eu abalava. Acho que nem tinham dado as seis e meia. E por acaso adiantava ficar ali a remoinhar? Além disso de Lisboa a Chaves é um esticãozito. Umas cinco horas de estrada bem batidas, mais pelo menos uma paragem. E eu fiz duas. E fui devagar. O carro é velho, convém não lhe puxar a corda, nem ele alguma vez teve motor para grandes velocidades, e faz-me muito jeitinho. Imagina se acontecia um azar. Sei lá onde desenrascava o dinheiro. Qualquer mínima despesa fora do programado deixa-nos numa aflição, se o carro avariasse acabávamos enterrados num trinta e um. Pelo menos não existem crianças. Fiz por isso, claro. Antes não me apetecia, nem havia homem para semelhante, e agora só se pifássemos do juízo. Eles dizem que isto está melhor, que o país cresce… Se calhar, mas custa-me fiar. Cá em casa continuamos no cada migalha conta. Vê-se cada coisa por aí… Ouvem-se misérias. Melhor prevenir. A prudência nunca matou ninguém.

 

Sim, sem dúvida que me pesou na decisão. Não foi uma coisa sem eira nem beira, tipo capricho. Deixa-me contar.

 

Só me pus em Chaves quase à uma. Mais de seis horas de viagem. E se soubesses como me entendo bem com a estrada, eu e o volante e os pedais e aquele pavimento a rolar-me por baixo, como um círculo infinito, como se enquanto estivesse nessa roda tudo permanecesse seguro, tranquilo. Soa a disparate, eu sei. Não, não tenho nenhuma alma de poeta. Nem sequer acho graça à poesia. Verdade. Com franqueza. Gosto é desta ideia de movimento contínuo. E conduzir dá-me isso. Conduzir limpa-me. Olha, desmancha-me as preocupações.

 

Tipo o café? Talvez. Em parte. Funcionam de forma um bocado diferente. O café anda mais para os lados da pica, uma energia extra, a pôr as prioridades na ordem certa. Conduzir deixa-me com um vazio bom. Fico a existir assim apenas entre o carro e o percurso, e precisava mesmo disso.

 

Cheguei a Chaves desanuviada. Nada de contas às poupanças no banco, nada de cismar no subsídio de desemprego a acabar já no próximo mês, de pensar não tarda a senhoria espeta-nos no olho da rua e volta e meia fincar-me nevoenta por causa de um maldito pesadelo que não me acontecia há quase vinte anos, nada de nada de nada disso. Mesmo enquanto ia do carro à casa, ali uma pessoa deixa sempre o carro afastado, percebes, pelo menos um bocadito, o problema de se viver nas imediações da ponte, faz-me fé, mesmo nessa altura, zero. Apenas um airoso cá estou e vamos lá despachar isto de uma vez.

 

Nem sequer a cor da casa me afectou.

 

Julguei que me chateasse, fizesse revirar os olhos, um não tenho paciência, vá, eu sempre embiquei com aquele verde, tu sabes, de certeza que te expliquei. Serve para toldo de loja, para casa não. Ainda hoje continuo sem entender porque diabo a pintaram daquela cor. E agora suponho que vou permanecer desentendida. Ou talvez não. A cidade está pontilhada daquele verde, em portas, caixilhos, varandas, vai daí até há uma explicação, um significado qualquer, um motivo histórico, quem sabe, não me fará é passar a gostar da cor. Esfrega-se-me nos nervos, que queres, e mesmo assim naquele dia passei sem me quedar um segundo com a questão.

 

Pensando bem, até podia ter-me dado um arrepio. Para mais depois do pesadelo, com as memórias só à espera de uma desculpa para fervilharem, compreendia-se. De algum modo esperava-se. A primeira vez ali a seguir ao funeral, com cinco meses entremeados? Eu contava com isso. Antevi isso. E cuidei de me preparar, disse-me no dia anterior tu segura-te, rapariga, o que lá vai lá foi, são umas paredes, ponto, estás muito longe daqueles anos.

 

A mim ajuda-me.

 

Cada um como cada qual, e comigo funciona. Parece que me aquieta, não me descubro a embater nas coisas no meio de um turbilhão, permite-me tempo. Ponho-me quedada, com a cabeça calma, pergunto-me o que pode correr mal, escarafuncho, assim à procura de oportunidades para o perigo se encafuar, e ensaio umas formas de reagir. No fundo arranjo-me, oriento algum controlo.

 

Não, não é mania de estar sempre em cima de tudo.

 

Porque havias de pensar que me acanho com a vida?

 

Medo? Também não. Isso são ideias de quem sempre viveu sossegado nos seus cantinhos. Se achas confortável reagir enquanto te atiram para a fervura, olha, não sei que te diga, para mim não serve. Aconteceu-me demasiadas vezes.

 

Eu disse-te que fui uma criança minguada. Um ratinho acabrunhado. Nada de biblioteca. Porque insistes? Os livros nunca me chamaram. As artes visuais sim. Aliás nestes últimos dias tenho andado a remexer na memória e as alegrias da infância e adolescência aparecem-me sempre rodeadas de tintas, uma série de imagens quase paradas, quase compostas, como se tivessem vontade de quadros, percebes, e entre elas umas quantas pinturas minhas, desenhos que fiz, aguarelas, em papel cavalinho, folhas pautadas, às vezes até em cadernos quadriculados. No que havia, que o meu pai enviava apenas umas favas contadas de dinheiro, suficiente para a escola e meia-dúzia de despesas correntes mais as prendas de anos e Natal, e essas a minha avó que as escolhesse. Roupa e sapatos em quase todas as voltas, coisas práticas, embora a certa altura me tenha calhado uma boneca, no aniversário dos meus quatro ou cinco anos, a única, de plástico espesso, com aquele aspecto grosseiro, vês, lá está, melhor do que a velhinha da minha mãe com que costumava brincar. E a minha mãe fez-lhe umas roupas e cobertas a partir de panos velhos e lençóis coçados praticamente até ao fio. Depois foi uma mochila, para a entrada na escola. Simples e sem bonecadas, castanha, à antiga. Durou-me a escola toda, desde o principiozinho até mais tarde ao último dia do secundário. Nunca mais a vi. Suponho que a minha avó a passou a alguém necessitado, acertava lá com as maneiras dela. A caixa das aguarelas chegou no Natal a seguir à morte da minha mãe. Ainda a tenho, sabes, e vai não vai pego-lhe. Continua uma maravilha. Grande, vinte e quatro cores, metálica, um produto de boa qualidade, de marca a sério, daquelas que vês nas papelarias, com nome estrangeiro. Um mimo raro. Uma cedência sem exemplo.

 

Como se ter sete anos importasse para o assunto.

 

Sete ou treze, significava o mesmo. Ideias artísticas não cabiam no lote de mais-valias da minha avó e não mereciam incentivos. Melhor cortá-las rentes e tão cedo quanto possível. Os doutores que as adubassem e lhes fizesse bom proveito. Gente como nós não conseguia vida para semelhantes luxos, olha ficar de rabo para o ar o dia inteiro à volta de telas, onde é que isso alimentava barrigas que já não conhecessem fartura de posses e padrinhos.

 

Ouvi-lho umas duas vezes. Não mais. A mulher odiava desperdícios e o que estava dito, dito estava, escusado gastar mais saliva. Nem precisava. Reteve-se-me bem gravado. Quando a Catarina me deu uns pastéis de óleo pelos doze anos, a Catarina no fundo na altura não passava de uma pirralha eléctrica, a mãe dela pelo contrário sempre foi amorosa, e engraçava comigo, preocupava-se, e como as prendas escolhia-as ela, saiu-me na rifa aquela surpresa, fiquei num encantamento, decerto imaginas, mas a minha avó fincou de tal forma os olhos e a queixada que só me atrevi a usá-los um bocadito e sempre às esconsas.

 

Oh, problema não havia. Nada assim físico, consequente, não me cairia dali castigo. Apenas um terror, um desconforto todo tão inteiro… Ela olhava-me, muito a direito, o corpo numa firmeza absoluta, e vinha-me cada baque. Ficava entesada. Iam-se-me os batimentos. A modos que até mirrava.

 

Tenta entender: pela lógica dela, o que não parecesse essencial ou muito próximo disso contava como futilidade, uma insensatez, portanto, um esbanjamento reprovável de dinheiro conseguido a pulso e muito suor, algo próximo do pecado, embora esse termo não costumasse aparecer-lhe no vocabulário, e ela encarregava-se de to mostrar, de que sentisses os vários alfinetes da vergonha, largos e minúsculos e pejados de espinhos bem afiados e retorcidos, uma asfixia.

 

Vivia uma religiosidade muito pragmática, nada beata, um crucifixo nos quartos, pelo Natal punha no móvel da sala o presépio de louça que herdara dos meus bisavós, três ou quatro missas ao ano, e bastava. Nenhum hábito de conversas bíblicas, seca a proferir aquelas frases repetitivas da igreja, precisa e curta a benzer-se. Importava-lhe a moralidade do dia-a-dia, isso sim sem dúvida alguma, e ai de ti se não a seguisses pelo menos de forma geral, tornava-se uma pústula, convertia-te imediatamente em indesejável, uma pessoa marcada, infame, no fundo degenerada. A devoção podia ficar ao teu critério, não lhe pesava nas impressões nem nos juízos, a tua postura perante o quotidiano, às vezes em ninharias, aí alto. Sempre primeiro antes e depois os preceitos que ela determinara. E conseguiu incutir-me um temor crasso de lhes fugir.

 

Medo dela, percebe-me, nada de infernos ou prisões. Ainda hoje quando me ponho a pintar me descubro às vezes com uma tremedeira, a querer verificar se ela não está ali a censurar, para veres a força daquela mulher, a influência que me teve.

 

O meu pai?

 

Achas que o meu pai amansava a fervura? Que intervinha?

 

Nem sei se alguma vez me viu, quanto mais. Ia agora contar-lhe. Nem me ocorria semelhante. Falava com ele umas cinco vezes por ano, a picar ponto, pouco mais, e não lhe escutava nada muito além de estás bem, bom saber, ora então vá, não cries trabalhos, adeus, pois um beijinho. Ainda agora não passamos disso, começámos foi a ligar-nos menos vezes, desperdiçar tempo para quê, há coisas melhores onde ocupar os minutos.

 

Durante a doença da minha mãe, sim, acrescentava algo do género vá, e a tua mãe que se ponha boa. Depois telefonou-me quando ela morreu, com um palavreado sobre fazer-me forte, que ela estava muito doente, a sofrer, e a minha avó ia cuidar de mim, chegaria dinheiro suficiente, ele não podia aparecer, o trabalho, a viagem, gastavam-se dias, e o salário não esticava, a realidade era como era, a conversa que eles todos me davam desde que me lembro. Aliás também foi o que te contei, ou não foi, outros tempos, viagens longas, menos transportes e as dificuldades que eram grandes, aquilo entrava pelos ouvidos e pela cabeça, ficava lá alojado a parecer normal.

 

Eu sei que não é normal ele não voltar ao menos para o funeral da minha mãe, mas que queres, na altura, com sete anos, uma pessoa pensa lá nesses termos, os adultos dizem, nós acreditamos, em especial se sempre nos vimos nessa realidade. Só percebi a questão aí aos onze anos, porque por algum motivo se me enfiou uma cisma de querer visitar Paris e comecei a escarafunchar-lhes a paciência, a insistir o pai está lá, e fulano vai visitar o filho e diz que me leva e só preciso de pagar comida e ficava de prenda de anos e Natal deste ano e do próximo, e tanto moí que a minha avó acabou a dizer-me o teu pai arranjou uma família por lá, apareceres-lhe vai atrapalhá-lo.

 

Casou com a irmã de um amigo qualquer das obras. Na altura já tinham um miúdo, outro a caminho.

 

Não, nem apresentações nem ressentimentos. Aviamo-nos bem como estamos: uma família para cada lado.

 

Nem me ocorreu sentir ciúmes. Ele já mal me aparecia nos dias, não lhe queria a exclusividade para nada. Apanhou-me foi de choque.

 

Fugi para o rio, pela rua do costume. Ela não me seguiu. Nunca foi de me cortar o espaço, de se me intrometer na solidão. Deixou-me. E à noite veio sentar-se-me na cama, a encarar-me de frente, os lábios quase tesos, monocórdica, a explicar a tua mãe queria um marido, tratou de se apanhar com uma filha e o teu pai fez o que lhe competia, tens um nome, roupa, e comida, e não precisas de mais, ficas quietinha aqui comigo, agora dorme.

 

Nossa, parece que até a ouço. Nem encontrei reacção.

 

Passei quase metade da minha vida sem me ajeitar com reacções.

 

E estranhaste tu que me preparasse para regressar à casa dela. Mesmo com ela morta e enterrada há cinco meses. Não que houvesse uma zanga, nada assim nesses moldes. A história de belas-artes finou-se tanto por culpa dela quanto minha. Anunciei-lhe que ia candidatar-me, que pedia uma bolsa, me sustentava, ela respondeu que eu precisava de um emprego, não de um curso em quadros, o agrupamento de artes já fora erro suficiente, portanto mexi-me para Lisboa. Emprego por emprego sempre trocava de ares e a capital havia de parir mais ofertas. Ganhámos esta mania de achar que oportunidades aparecem é nas grandes cidades, as Mecas do emprego ou o que lhes valha. Enfim, governei-me. E não posso queixar-me de me atarem as asas quando não tratei minimamente de as soltar. Fui andando, sabes como é, a gente acomoda-se no mesmo ramerrame, calhava lá agora apontar o dedo a terceiros. E eu e a minha avó dávamo-nos, verdade se diga. Estávamos resolvidas, vá, até falávamos com frequência. Só que ainda assim.

 

Mesmo depois de abalar dali quase há vinte anos.

 

Lá está, continuava a casa dela, com todo aquele passado, o frio, as noites de pesadelos a correr rua abaixo para me afogar nas águas entre limos e algas feita aquela Ofélia. Claro que decidira vender a casa. Até apareceu comprador num instante. A casa mantém-se jeitosa, sabes, a minha avó deixou-a bem conservada, não precisa de se ir à pressa renová-la, e a senhora da imobiliária fez um trabalho impecável, tudo combinadinho para se assinar a promessa de compra e venda no vinte e oito de Abril.

 

Fazia umas arrumações, encaixotava mais umas louças, dormia, e no dia seguinte começava a receber uns dinheiros extra e a livrar-me daquele palco dos moralismos da minha avó com as suas frases firmes e frias como facas.

 

Imagina o que me disse na véspera de eu abalar para Lisboa. Ainda o sei letra a letra: empregada de mesa é um trabalho digno, honesto, se fosses para os quadros acabavas uma artista reles, a expores-te nas ruas à espera da compaixão dos outros para te caírem umas moedas.

 

Santos Deus, arranjava cá um gelo na postura e nas palavras.

 

E depois, às vezes, saía-se com umas ternuras que até te apagavam o chão debaixo dos pés.

 

Então não é que fui descobrir os meus desenhos e pinturas todos guardadinhos numa capa dentro da cómoda dela. Deu-me um aparvamento… Catou-me tão de surpresa que olha, liguei para o número que a Catarina me passou no funeral. E em boa hora. Aconchegou-me.

 

Fez-se uma bela mulher, a Catarina. Fina como um rato, divertida, divorciada, se eu adivinhava, e como o filho estava com o ex, saímos a tomar um copo. Num bar do centro, o Abade, acho.

 

Ao tempo que me falhava uma cerveja. Voltei embalada. Qual sofá qual evitar o quarto dos pesadelos, afinal aterrei direitinha na minha velha cama.

 

E não vieram corridas ou ruas. Apareceram-me apenas umas águas lentas, assim ondulantes, acredita, comigo lá no meio entre sossegos e ecos, e a corrente seguia, ia, ia sempre, num rodeio quieto, tranquilo.

 

Acordei a olhar para a cama e a pensar tu precisas é de uma foda. Eu e o Jorge batíamos uma bem dada, a ver se não te desapareciam logo as assombrações e memórias infelizes. Tudo rola e se renova. Adiante vai o caminho.

 

Se calhar foi aí.

 

Ou se calhar foi com a Catarina e a aparição dos meus papéis.

 

Ou talvez tenha começado até antes de me meter no carro para Chaves. Uma engrenagem qualquer a girar devagarinho, a aquecer, a ganhar balanço e força e energia e a apanhar-me inteira, percebes, a entrar-me raciocínio adentro até me aparecer a ideia de que uma casa é uma casa, mantém-se, não paga renda, não nos chutam de lá, e para mais esta vem com uma loja alugada, o que sempre conta mais uns trocos ao fim do mês, e o país anda mas continua estagnado e ainda o mês passado o Rui teve de voltar para casa dos pais, tu já viste, um homem de quarenta e dois anos a precisar de prestar-se outra vez às rotinas dos pais, a enfiar-se no quarto de adolescência com a mulher porque não têm mais onde viver, e a Elsa idem o ano passado, e eu com uma casa minha, segura, feitas as contas volve-se ao mesmo, pior arrendar do que ter, a longo prazo, claro, mas o subsídio a acabar-se e o Jorge só em biscates, e isto não há que ficar a teimar em fantasmas, os sítios tornam-se o que fazemos deles, e no fundo à casa nunca lhe faltou graça, e cheguei à advogada e não consegui, não consegui assinar o diabo da promessa de compra e venda.

 

A modos que, é como te disse, hei-de aparecer aí em Lisboa pelo menos mais uma vez só para rematar assuntos. Agora de resto estou aqui em Chaves e por aqui continuarei. A experimentar o que acontece.

 

Resolve-se. Também para fazer aquilo da Uber, Lisboa ou Chaves funciona igual ou quase, e eu ando a correr os restaurantes e cafés. Nós ajeitamo-nos bem com o inglês e o francês, e começa a notar-se o turismo a crescer por aqui. Vai daí ainda nos aparece mais emprego no interior do que na capital.

 

Ora, vens visitar-nos. Basta dizeres. Amanho-te um quarto e tudo, e se quiseres louça, ou móveis, sobram-me velharias e relíquias com fartura. Ou despacho para os amigos ou vendo, detesto apegamentos. Para as urtigas com saudosismos e nostalgias. É retroceder, movimento ao contrário do que gosto.

 

Lamentei pela senhora da imobiliária, essa parte sim. A sério, senti-me mal, que queres, às vezes despontam-me destas, depois passam. E em todo o caso acho mesmo que decidi bem. A casa serve-nos, assim com aquela estreiteza arrumadinha, a bem ver mimosa, uma pessoa entra e sai pela Rua do Rio, a minha rua tanto de pesadelos como de escape, surgia-me muito nos desenhos, sabes, uma paz, então comparada com o ambiente da ponte… O barulho à noite nem se estende por aí além, e não se arranja sítio mais central. O carro estaciona-se afastado, não vem daí mal ao mundo. Até o maldito do verde parece que começa a arreliar-me menos.

 

Juro. Com franqueza. Foi uma esconjuração que me deu.

 

E às vezes a rua põe-se de uma frescura tão ligeira, e a Primavera circula-me na pele, em sonhos, percebes, ainda ontem, e vou a passear junto às águas, um caderno e os pastéis de óleo entre os braços, e sento-me, a traçar umas linhas sinuosas, e acordo, e a nossa vida roda.

 

“Ouve” foi escrito no âmbito da segunda edição do festival literário flaviense Ponte Escrita – Encontro Luso-Galaico de Escritores e consequentemente publicado na colectânea Km 0 (2018), editada pela Câmara Municipal de Chaves.

 

 

 

 

Inês Botelho (1986) licenciou-se em Biologia, fazendo depois o mestrado em Estudos Anglo-Americanos. Escritora, tradutora para várias áreas, investigadora quando consegue disponibilidade, tem publicado romances, diversos contos, e múltiplos artigos.

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