Cultura

Meus centenários

Vincent Van Gogh, “Amendoeira em Flor” (1890)

“Adoro nomes / Nomes em ã / De coisas como rã e ímã / Ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã / Nomes de nomes / Como Scarlet, Moon, Chevalier, Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé / E Maria da Fé”, canta Caetano Veloso, em sua “Língua”; por minha vez, sempre achei linda a palavra centenário, principalmente pelo que ela representa: cem anos de alguma coisa ou de um fato é muita história – seja com h maiúsculo ou minúsculo. Algo que aconteceu durante cem anos, ininterruptamente, deve ter muito a contar, a transmitir, a ensinar, mesmo ensinamentos penosos e rígidos em suas fases mais difíceis. 

Em se tratando de pessoas, os centenários em geral são sempre de alguma celebridade, quer da literatura, da música, das artes plásticas, da televisão ou do cinema. Em 2020, tivemos, por exemplo, cem anos do nascimento de João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector, Fellini, Elvira Pagã, Bené Nunes, Anselmo Duarte, Jorge Dória, Glória Magadan, José Lewgoy, Jorge Zahar, Ravi Shankar, Lygia Clark, entre outros. Intimamente, sinto estes aniversários celebrados post-mortem mais como tributo, uma reverência, do que propriamente como uma celebração festiva, já que os artistas não mais estão entre nós, neste encontro, e o sentimento de saudade física pesa. Pessoas mais velhas me seduzem: ainda penso que, sendo elas mais experientes, devem ser mais preparadas em algum aspecto da vida; sempre tento aprender com elas, até porque respeito muito terem começado seus caminhos sem celular, sem pesquisas no Google, sem precisar de nenhum Estatuto do Idoso para conferir-lhes descontos ou direitos. Pessoas centenárias me enternecem – são árvores humanas que conhecem os perigos de machado, as mudanças do solo, as intempéries climáticas, e que ao desfolharem-se, legam-nos suas raízes.

No que tange à minha ancestralidade, não tive, que eu saiba, nenhum parente que chegasse a comemorar seu centenário, nem mesmo perto disso. Talvez daí eu tenha acordado um belo dia querendo comemorar meus cem anos, mas com saúde, lucidez, em plena posse de minhas faculdades mentais, físicas e literárias. Ora, se não posso saber se chego até lá, que fará ter ideia de como estarei, caso isso aconteça. No meu último aniversário morando em Maricá, no Rio, resolvi fazer cem anos e festejá-los junto aos mais próximos. Reconheço que houve certo desconforto inicial, devido a ser o fato bastante inusitado e, admito, um tanto surreal: para uns, deve ter parecido excentricidade, ou recurso para omitir minha idade verdadeira; para outros, vontade exacerbada de “ser diferente” (como se alguém com minha altura precisasse querer ser o que já é…). Como sempre, não me importei muito nem com o espanto alheio, nem com o que podiam pensar a respeito da minha decisão. Não planejei nenhuma comemoração grandiosa, porque não sei se teria ânimo aos 100 para tanto: tive apenas velinhas (daquelas que parecem minifogos de artifício…) com o número 100 em cima do bolo e um jantarzinho gostoso. Simples assim. Foi dessa forma que realizei plenamente o desejo de viver meus cem anos com saúde e paz. Caso eu chegue até lá, já ensaiei comemorá-los.  E se você me disser que festejei uma irrealidade, uma ficção, eu contra-argumentarei citando o título da peça de Pirandello: “Assim é se lhe parece”… – ainda mais em tempos de realidade virtual, em que simulacros e fake news posam como verdades solenes… (o que me lembra uma saborosa e sábia frase de Montaigne: “ Ninguém está livre de dizer tolices. O imperdoável é dizê-las de modo solene”).

Eu me sentia plenamente satisfeita com o meu centenário, até há pouco, e não esperava comemorar mais outro em vida, pelo menos não tão cedo. E eis que nossa querida InComunidade me ofereceu uma segunda chance por ocasião de sua centésima publicação. Aqui, o centenário é real e embora eu não estivesse presente desde o primeiro número da revista, sinto-me fazendo parte deste marco, porque publicações literárias estão no meu DNA desde o tempo do meu avô (em 1923 ele fundou a Costallat & Miccolis, no Rio, muito famosa na época; Giuseppe sabia o quanto  impressos  –  folhetos, jornais, livros, almanaques – podem mudar mentes e comportamentos). Herdei dele este grande fascínio; e em se tratando de revistas culturais então, minha paixão é elevada à enésima potência…

Nas décadas de 1970 e 1980 a imprensa literária era intensa, havia desde periódicos de luxo até folhas mimeografadas ou datilografadas e xerocadas (como o Jornal Dobrabil, do Glauco Mattoso); aos poucos ela foi sumindo de circulação e, com ela, a leitura de um “arsenal” de poemas, contos e crônicas. Lamentável, pois no fundo somos todos narradores de nós mesmos ou dos outros, e há quem não perceba. Atualmente, o conceito de narrativas é bastante amplo, não é mais inerente e restrito aos romances ou às novelas; em prosa ou em poesia, narramos o tempo todo nosso cotidiano, mesmo sem notar, ao transmitir aos outros, por exemplo, a nossa visão do que observamos pela janela, ou nossa versão das notícias que lemos nos jornais; diariamente inventamos fantasmas, dramatizamos problemas, escrevemos roteiros românticos ou cruéis. Para Benjamin, uma narrativa sempre traz aconselhamentos através de “um ensinamento moral, de uma sugestão prática, de um provérbio, ou de uma norma de vida” (…) De qualquer maneira, o narrador é alguém que sabe dar conselhos”. E é isso o que a equipe inteira da InComunidade faz sem parar: através da literatura, os escritores (lúcidos narradores) passam sua experiência concreta, e aconselham todos os leitores, cada um ao seu modo, a prosseguir narrando suas histórias, pois, nesta troca, efetiva-se o aprendizado coletivo (e mútuo). Desde sempre, portanto, faço parte dessas cem edições – todos nós – e saibam que estou cantando parabéns a plenos pulmões até hoje. E, de repente, posso até entrar no Guinness, o Livro dos Recordes, por ser no mundo a única bicentenária viva…

Eu tinha terminado esta crônica no parágrafo acima, mas não resisti a justificar ter escolhido esta belíssima pintura de van Gogh, “Amendoeira em Flor”. O primeiro motivo é que esta árvore tem muito a ver com Portugal, por seus grandes plantios (em Algarve, no começo do ano passado – 2020 –, aconteceu inclusive o 1º Festival das Amendoeiras em Flor, com programação cultural em meio à natureza); segundo, por ser a amendoeira uma árvore cuja origem tem centenas de anos, a própria Bíblia refere-se a ela, suas flores serviram de ornamento à Arca da Aliança. Se a oliveira é o símbolo da abundância e da paz, a amendoeira prenuncia a renovação, por ser a primeira que floresce ainda no inverno, desafiando a estação gelada e vencendo-a. Se suas flores brancas lembram a neve (linda é a lenda da princesa Gilda com o soberano mouro, antes da independência de Portugal), a ousadia delas profetiza a primavera, o despertar para um novo ciclo mais ameno e colorido. Mais: o quadro de van Gogh está localizado em Amsterdã, outra palavra terminada em a, para “gáudio” de Caetano Veloso. Por fim, esta pintura fez brotar em mim um paralelismo de imediato com nossa InComunidade, que com sua florada literária persistente, constante e contínua, despolui nossa inspiração, purificando a Terra. Sintetizando: tudo a ver.

 

Leila Míccolis, brasileira, escritora de livros (poesia e prosa), televisão, teatro, cinema, pesquisadora, com Mestrado, Doutorado e Pós-doutorado em Teoria Literária (UFRJ).

 

 

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