Cultura

Editar a colônia: as obras poéticas de Alvarenga Peixoto

 

No Brasil, em ambiente universitário e fora dele, a produção crítica sobre a literatura pré-independência tem, infelizmente, recebido cada vez menos atenção. Isso se deve a uma série de fatores que, entre diversos outros, incluem o impressionante e aviltante desinvestimento em pesquisa nas humanidades de maneira geral, secando as já parcas fontes de sustento de pesquisadores de graduação e pós-graduação, à medida que somas são liberadas para áreas ditas com “retorno financeiro” imediato; a dificuldade de acesso a fontes primárias; e uma tendência a se valorizar a literatura mais recente (digamos do século XIX em diante) em detrimento das “velharias” literárias, tendência essa impulsionada por razões ideológicas pouco definidas, e ainda menos substanciais, as quais enxergam a literatura mais antiga sob vieses exclusivistas e excludentes.

Aliando o primeiro ao segundo motivos, porém, é de certa forma compreensível que eles desestimulem o jovem pesquisador a se aventurar por uma área cujos materiais primários se encontram espalhados em arquivos em diversas partes do país e do mundo. Por estar afastada do presente, a leitura dos textos compostos durante o período colonial brasileiro requer uma gama de ferramentas de busca, análise e interpretação desconhecidas por aqueles que frequentam os cursos de Letras atuais, tais como a paleografia e o conhecimento das complicadas tradições retóricas e poéticas estampadas nos textos oitocentistas (e anteriores). Havendo menos interessados em se aventurar pelas agudezas dos textos coloniais, e talvez por uma política ativa de valorização de outras áreas dentro dos estudos literários, o interesse dos pesquisadores brasileiros se mingua e, consequentemente, menos cursos são oferecidos que possibilitariam o estudo dos primórdios de nossas letras. Panoramicamente, as causas e consequências desse círculo de desinteresse se tornam uma questão de ovos e galinhas, gerando um debate que peca pelo supérfluo.

No entanto, e felizmente, sempre resta alguma esperança e os derradeiros moicanos da pesquisa no Brasil têm razões para júbilo ao se depararem com o recente lançamento das Obras Poéticas de Alvarenga Peixoto, publicado pela Ateliê Editorial em parceria com o David Rockefeller Center for Latin American Studies.

Fruto de uma pesquisa que se estendeu por cinco anos, Caio César Esteves de Souza se debruçou, levado por um interesse de início ainda difuso, sobre os textos produzidos por intelectuais (chamemo-los assim) do oitocentos no Brasil. Incursionando pelo emaranhado de retalhos que é o estado recente da produção poética colonial, fruto da fragmentação dos materiais primários nos arquivos brasileiros, o trabalho partiu de uma inquietação quanto às fontes impressas disponíveis e pretendeu recolher, sistematizar, interpretar e analisar aquilo que se considera o conjunto da produção poética de Alvarenga Peixoto (c. 1744-1782), um personagem luso-brasileiro ligado ao movimento inconfidente mineiro.

No entanto, as três fontes impressas principais, aquelas de Manuel Rodrigues Lapa (1960), Domingos Carvalho da Silva (1956) e Joaquim Norberto de Sousa e Silva (1856), apresentavam problemas metodológicos que interferiam diretamente na obra atribuída ao poeta luso-brasileiro, por vezes excluindo e por outras acrescentando textos mediante o uso de critérios pouco ou nada justificáveis. O problema da metodologia, nesse caso, fragmentou ainda mais o conhecimento que se tinha acerca do conjunto de textos de A. Peixoto. A pesquisa, então, além de reunir os textos atribuídos ao poeta, ampliou para uma discussão acerca do pensar sobre uma obra dispersa em arquivos e da maneira mais interessante de se estabelecer um conjunto de textos que se pode chamar de “obra”, e é aqui que reside a maior importância do livro publicado por Caio César.

Com uma narrativa pessoal e fluida, o organizador e autor narra em sua Introdução a trajetória de investigação (em seu duplo sentido) que pode ser considerada uma verdadeira aula sobre a maneira de abordar textos antigos e aqueles não editados em livro. Isso porque as metodologias adotadas pelos autores acima e suas escolhas duvidosas impuseram uma busca necessária nos manuscritos aos quais eles se referiam, e Caio César, munido de informações básicas oferecidas pelos autores, imergiu nas poeiras dos códices, das folhas volantes, das folhas avulsas dos arquivos. Sua trajetória passa pelo Rio de Janeiro, por São Paulo, Lisboa, Coimbra, Évora e Porto, onde, reunindo material, ele pôde atestar ou refutar ou complementar as informações que os três críticos anteriores haviam fornecido para sistematizar a obra atribuída a A. Peixoto. Por um feliz acaso, e este é importante quando se lida com códices que reúnem textos miscelâneos, Caio César encontrou seis poemas “inéditos” no arquivo da Biblioteca Brasiliana, da Universidade de São Paulo, os quais eram desconhecidos nas versões impressas das obras reunidas do poeta. Em meio a esses escritos (41 no total), alguns poemas aparecem uma única vez, outros mais de uma vez e ainda outros poemas são semelhantes porém contêm diferenças significativas em seus versos, o que hoje se pode chamar de “versão”.

Esse conjunto de textos, por sua vez, suscitou outras diversas questões relacionadas à edição de um conjunto de obras poéticas de um autor sobre o qual as informações são parcas: que critérios utilizar para incluir ou excluir um texto? Como resta a questão de autoria ao se deparar com manuscritos que, por vezes, não apresentam informações a esse respeito? Se se suspeita que um texto sem atribuição autoral é de A. Peixoto, como sabê-lo para incluir na edição? A questão de autoria se impõe nesse período como no e após o romantismo? Deve-se seguir uma cronologia de composição ou publicação dos textos? Se sim, como estabelecê-las se ausentes dos códices ou das folhas volantes? Textos semelhantes, mas que contêm variações, devem ser considerados “versões” ou textos diferentes? Ao editá-los, deve-se imprimi-los ou não?

A leitura do estudo de Caio César nos permite debater respostas a cada uma dessas perguntas, por isso sendo o que chamei acima de aula sobre edição de textos manuscritos em geral.

Para o caso de A. Peixoto, a posição adotada para a inclusão de textos é a mais interessante possível: ocorrida uma vez, a composição é incluída; ocorrida mais de uma vez, porém com variações, os vários textos são incluídos. Pode-se aferir a autoria dos textos por meio das didascálias (indicações fora da mancha gráfica do texto, nesse caso) que fazem referência ao nome ou apelido do autor; ainda assim, tais textos necessitam de avaliação para se descobrir se de fato podem ser traçados a A. Peixoto ou se a didascália foi inserida após a manufatura do manuscrito. Porém a questão é um tanto mais complexa: para dirimir essa dúvida, Caio César traça a, digamos, “genealogia” de um poema (“Conselhos a Meus Filhos”) cuja atribuição é dúbia. Por vezes relacionado a A. Peixoto, por vezes à sua mulher, Barbara Heliodora (também poeta), a questão se abre em duas outras: ler no texto um “estilo” que se possa atribuir ao poeta (partindo, portanto, do pressuposto – Caio já o diz errôneo – de que o poeta é um ser constante) pode ser considerado um critério para atribuir autoria?, e, segundo, a informação precisa da autoria seria tão relevante assim?

A resposta a essa segunda pergunta se baseia nos estudos que dois pesquisadores brasileiros, o professor emérito João Adolfo Hansen e o professor Marcello Moreira, realizaram sobre a poesia de Gregório de Matos, outro poeta do período colonial luso-brasileiro cujo estudo impõe questionamentos similares aos feitos sobre A. Peixoto. Por influência do movimento romântico, a individualidade do compositor se tornou um dos índices de valoração da obra produzida, ou seja, o fato de ser tal poeta escrevendo, e sendo ele reconhecido, imprimiria a uma obra o genius que o acompanha. Essa visão se tornou disseminada também na crítica de arte e na crítica literária do período, atribuindo-se ao autor do texto uma percepção de obra que se relacionava a si próprio, à sua biografia (como o fazia Sainte-Beuve), e ao espírito de uma certa época, o que supostamente poderia oferecer subsídios para a análise das composições. No entanto, tal raciocínio não se enquadra e gera efeitos desastrosos quando se tem em vista a produção de obras anteriores a esse movimento.

Uma primeira razão é que a obra produzida, mais do que expressar o fruto de uma cabeça pensante, tinha seu valor julgado pela proximidade ou não a tradições poéticas e retóricas estabelecidas previamente: a emulação mais ou menos “perfeita” de um gênero (um soneto, uma elegia, uma égloga) dizia da qualidade do texto. Levando isso em consideração, Caio César afasta a noção de que se deva procurar no “estilo” de um autor as marcas de sua autoria, tendo em vista que, pela emulação, a voz poética deveria se aproximar mais de um gênero e menos da expressão de uma subjetividade singular. Assim, mais relevante para se editar uma obra poética como a de A. Peixoto, hoje, é identificar os textos que compõem a obra atribuída ao poeta, ainda que, em um caso ou outro (e não se pode saber precisamente devido à falta de informações), possa ser atribuída a este ou àquele uma determinada composição.

Tal raciocínio tem repercussões também nas variações de poemas, como ocorre, em especial, com o soneto “Eu vi linda Jônia e, namorado,” de A. Peixoto. Dele, podemos entrever, e Caio César o mostra nas páginas 44 e 45 de seu estudo, diferenças notáveis entre uma versão do poema e outra. A crítica romântica quererá, entre as diversas variantes de um poema, que se estabeleça a “intenção original” do autor, chegando a um texto primordial que seria mais próximo daquilo que o autor pretendia. Ora, pelas próprias particularidades da poesia de A. Peixoto e com igual peso às da época, em que poemas circulavam livremente em folhas avulsas ou códices e, mais, eram modificadas no que o estudioso de poesia grega clássica Gregory Nagy chama de “composição em performance”, as variações de uma composição poderiam ser obra dos mais diversos fatores: censura a um verso ou palavra, erros de cópia, adaptações a uma audiência específica, entre outros.

Assim, atribuindo-se o texto ao poeta, Caio César optou por incluir as variantes conforme elas aparecem nos manuscritos. Afasta, portanto, a noção de um “poema original” que tenha dado origem às diversas variantes atestadas em diferentes manuscritos e pensa cada escrito como um produto em si. O fato de poderem ter sido feitas por terceiros, algo impossível de se provar na maioria dos casos, não impede que os poemas tenham sido lidos ou recitados como da lavra de A. Peixoto e, assim, incluídos em uma reunião de suas obras poéticas.

Uma segunda característica marcante da edição preparada por Caio César é a ordenação dos poemas e sua disposição na obra reunida. O critério adotado pelo organizador é imprimir os textos e suas variações segundo o manuscrito em que se encontram, algo bem pouco praticado nas (poucas) publicações de textos coloniais no Brasil. Essa disposição provoca o efeito de o leitor do século XXI, a quem o livro se destina, não considerar que A. Peixoto deixara uma obra reunida em um espaço físico unitário – o livro –, acentuando assim a noção de dispersão geográfica dos próprios textos, dispostos, como disse acima, em manuscritos em diversas localidades na América e na Europa. Aliado ao dito antes sobre a autoria, a distribuição dos textos na edição resenhada aqui é uma materialização da própria produção literária oitocentista no Brasil, frequentemente dispersa em manuscritos valiosos que empoeiram nos arquivos, intocados.

A edição contém ainda uma densa introdução de João Adolfo Hansen que situa as obras poéticas e a pessoa A. Peixoto no panorama mais amplo das letras coloniais luso-brasileiras. Como outros textos do professor, sua apresentação toca nos aspectos da composição de poesia segundo os ditames da retórica e da poética praticados nos séculos imediatamente anteriores ao XIX, quando essas noções foram modificadas e, em alguns casos, até mesmo abandonadas.

Caio César tomou o cuidado de apresentar em fac-símile os seis poemas (“Retratos”) descobertos em um volume pertencente à Biblioteca Brasiliana, da Universidade de São Paulo. As imagens, além de serem um acesso visual à época da manufatura do manuscrito, também são um estímulo para uma nova geração de pesquisadores que pretendam se aventurar nas letras luso-brasileiras coloniais. Os demais poemas, que amontam em trinta e cinco escritos que compõem a totalidade conhecida da obra poética de A. Peixoto, estão agora estabelecidos com um critério mais preciso, podendo ser considerados a coleção mais completa da poesia de que se tem notícia atribuída ao poeta. Como não pretende ser definitiva, Caio César, ao final de seu texto, aponta possibilidades de pesquisa em uma área que carece de melhores edições e, mais, de maior circulação a fim de que não se exclua do estudo da formação da literatura nacional – e dos estudantes e pesquisadores, como aponta J. A. Hansen – os seus primórdios, suas primeiras manifestações e sua posição no panorama literário mundial.

Afirmando que não é o propósito do volume organizado por Caio César, gostaria de ver dele um estudo sobre o conceito de formação da literatura brasileira levando em consideração os poetas imediatamente anteriores à independência e o questionamento, já a partir do romantismo, do que seria a “literatura brasileira”. A. Peixoto faz parte dela? Por quê? Seria essa questão relevante? O que seriam as letras “luso-brasileiras”?

Pelo instrumental técnico que Caio César mobiliza, pela qualidade didática da pesquisa arquivística e das diretrizes para a edição de textos manuscritos, a obra de Caio César, além de repor em circulação um poeta que merece, sim, ser lido no século XXI e além de manifestar um desejo cativante pela pesquisa em arquivos, é de suma importância para os estudos das letras coloniais luso-brasileiras. Nesse tom, repito as palavras de João Adolfo Hansen, ao final de sua Apresentação: “Este livro é uma excelente sistematização de seus pressupostos doutrinários e procedimentos técnicos. Desde agora, é referência fundamental para futuros estudiosos da poesia luso-brasileira do século XVIII”.

 

 

Dados da edição

Alvarenga Peixoto, Obras poéticas de Alvarenga Peixoto. Organização e estudo introdutório de Caio César Esteves de Souza. Apresentação de Kenneth Maxwell. Introdução de João Adolfo Hansen. São Paulo: Ateliê Editorial, 2020. 240 p.

 

 

Rafael Rocca dos Santos é pesquisador, tradutor e crítico literário. É graduado em português e alemão, mestre em teoria literária e literatura comparada (USP) e doutorando em literaturas lusófonas na Ohio State University.

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