Dois Poemas | Carmen Moreno
QUARENTENA
Que não me roubem mais os meus.
Nenhum Deus, com seus desígnios me leve à morte mais amores.
Perder não é verbo que se aprenda para sempre. Há retrocessos:
quando o vento estremece a memória das lápides,
o coração reacende a falta,
e a dor retorna fresca, feito a do último dia.
Hoje estou amarga, e não me basta saber
que de mim só se roubou a roupagem do amigo,
que ele está comigo em transcendência e atração.
Nada que me console, por ora, entender o imaterial,
o espírito e sua eternidade,
a Física Quântica e o Plano Astral.
Hoje estou concreta e banal.
Quero o corpo de minha mãe,
suas mãos morenas de nervuras,
veias saltadas, suas unhas longas e arredondadas,
o cheiro do creme comum no seu cabelo grisalho,
seus hábitos, seu hálito.
Não quero que me roubem mais os meus.
Por ora, a metafísica não me pacifica.
Nem os encontros com meus mortos, nos sonhos esparsos,
que deixam nas manhãs presentes de presença e paz.
Hoje eu quero mais:
colo, abraço, beijo, notícias,
novidades, palavras e perfumes.
Quero a textura de um encontro carnal.
A candura da pele na pele, sem desapego no alvorecer.
Que a saudade me pega, por ora, neste dia sem oração.
Dia de mortos e vivos. Todos vivos, todos mortos:
a distância mata de novo os que se foram.
Na solidão, morro de medo dos que irão.
***
ENSAIO SOBRE AS MANHÃS
A porta do fim dá num beco inusitado,
repleto de recomeços.
Ninguém descobre o frescor do chão desabitado,
enquanto o medo jura seus infernos!
Mas se a vida chama e o sujeito mete a cara,
não há terror que o aterre em jardim morto.
Movem-se as horas de infinito e novidades,
que não cabem nas compotas das certezas.
O vento descabela de improviso as folhas,
forrando de beleza o caminhar,
(e há dor na rebentação dos ramos).
Os dias são bichos indomados,
sem nome e classificação:
ninguém se socorre do sofrer por adivinhação,
nem pondo tranca nos abraços.
A vida entra em qualquer gruta,
e cata o ente debaixo de pedra,
quando cisma de ensinar pelo padecer.
Também o sol invade o olho agoniado,
devolve o infeliz ao sonho,
e transforma em liquidez seu sangue coagulado.
O certo é que nunca se sabe o que a manhã assina:
e a sorte é o não saber!
Carmen Moreno – Poeta e ficcionista brasileira, carioca, membro do PEN Clube do Brasil. Bacharel em Artes Cênicas e Licenciada em Educação Artística (UNIRIO). Publicou: Diário de Luas (romance), Rocco; Sutilezas do Grito (contos), Rocco; O Primeiro Crime (romance policial), Rocco; O Estranho (contos), Five Star; De Cama e Cortes (poesia), UERJ; Loja de Amores Usados (poesia), Multifoco; Para Fabricar Asas (poesia), Ibis Libris e Sobre o amor e outras traições (poesia), Patuá. Integra cerca de 40 coletâneas, entre elas, edições bilíngue. Sua obra foi tema de dissertação de Mestrado pela Universidade Federal do Rio Grande/RS. Algumas premiações: Prêmio Casa da América Latina: Concurso de Contos Guimarães Rosa, Rádio França Internacional/Paris; Bolsa de Incentivo ao Escritor Brasileiro (poesia), MINC/BN, e Prêmio de Desenvolvimento de Roteiros Cinematográficos (MINC).