Cultura

Blues para Cortázar

E para três amigos de ouvidos afinadíssimos: Noel Peralta, ao Porto, João Morales, em Lisboa, e Rodolfo Novaes, no Rio de Janeiro.  

                                              Antônio Torres

 

Ele não foi um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones. Pertencia a outra geração. Adorava mesmo era Duke Ellington, Louis Armstrong, os velhos cantores de blues. E podia ficar horas a fio falando de Thelonious Monk. Isso desde que ouviu no rádio, pela primeira vez, uma estranha música ainda desconhecida nas suas bandas.

 

Não custou a perceber que o que o encantava nessa música era o fenômeno maravilhoso que constitui a sua essência: a improvisação. Mas, no começo desta história, o garoto tornou-se apenas um chato, aos ouvidos da família. Porque ele só sintonizava o rádio num programa que tocava a tal música. O que dava sempre em briga. Seus pais detestavam aquela coisa de negros. Queriam ouvir mesmo era um tango, música de brancos. Afinal, estavam na Argentina.

 

O garoto cresceu, foi embora e se tornou um dos escritores mais importantes do mundo. E nunca perdeu a sua paixão pelo jazz. Sorte dos seus leitores. Uma de suas melhores histórias é uma viagem em torno do coração e mente, corpo e alma de um saxofonista drogado – e genial. Que soprava o seu instrumento como se quisesse arrebentar o mundo, a música – toda a música havida antes dele – e a si mesmo.

 

O conto se chama O perseguidor. Nele, Júlio Cortázar mergulha em águas pouco navegadas até o fundo da esquizofrenia de um artista de gênio, a apostar corrida com a loucura e a morte. Era mais um daqueles negros fantásticos que enchiam de calor as noites de Paris. Só que este tinha toda a pinta de um Charlie Parker, a quem a história é dedicada. Logo, não era apenas mais um.

 

Tudo isto vem a propósito de um achado: um livro publicado no Brasil pela Editora José Olympio no ano de 1991, em tradução do escritor Eric Nepomuceno. Trata-se de O fascínio das palavras, que reúne entrevistas de Júlio Cortázar ao uruguaio Omar Prego. Para este leitor – no caso, releitor -, o livro se torna ainda mais fascinante quando ele fala de jazz, da sua relação com a literatura, aquela coisa da escrita automática, da improvisação da escrita, do jazz como o equivalente ao surrealismo nas letras, do swing que pode dar ritmo a uma frase capaz de entrar no leitor por via subliminar, atingindo sua inteligência sem que ele perceba. E mais: um conto tem que chegar ao fim como chega ao fim uma grande improvisação de jazz ou uma sinfonia de Mozart. E assim o contista vencerá o leitor por nocaute.

 

Na apresentação de O fascínio das palavras, Eric Nepomuceno conta o episódio acontecido numa viagem de trem que Cortázar fez com Gabriel García Márquez e Carlos Fuentes. A certa altura da noite, Fuentes lhe perguntou quem tinha inventado de pôr um piano na formação de um grupo de jazz, e se ele sabia quando isso acontecera. “A resposta foi uma extensa e detalhadíssima aula sobre jazz, que terminou com uma profunda análise histórica e estética e que explodiu numa emocionada louvação a Thelonious Monk” – escreve Eric.     

 

Por essas e outras é que continuo a achar que há qualquer coisa de O perseguidor no filme Round midnight (Por volta da meia noite), do francês Bertrand Tavernier. Tanto quanto senti a falta desse conto no filme Bird, de Clint Eastwood, que conta a história de Charlie Parker.

 

Júlio Cortázar não chegou a vê-los. Ele morreu em 1984. E perdeu dois bons momentos de jazz no cinema. Mas muitos de seus leitores ainda continuam por aqui. Nem que seja para ouvir um blues em sua homenagem.

 

Antônio Torres

 

O escritor brasileiro Antônio Torres (Bahia, 1940) é romancista, contista e cronista, autor de 17 livros, entre os quais se destaca a trilogia formada por “Essa Terra”, “O cachorro e o lobo” e “Pelo fundo da agulha”, publicada em Portugal pela Editora Teodolito. Sua obra tem conquistado inúmeros prêmios no Brasil e traduções em vários países. Membro da Academia Brasileira de Letras, onde ocupa a cadeira fundada por Machado de Assis, Antônio Torres é também sócio correspondente lusófono da Academia de Ciências de Lisboa.         

https://www.academia.org.br/academicos/antonio-torres/biografia

 

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