Cultura

A teoria da felicidade em crônicas

Uma poeta toda prosa

Da teoria da felicidade às lições que o céu envia de expandir o universo, há um rio que passa e nos leva a um oceano de infinitos. Não é outra a sensação provocada por estes 43 dedos de prosa de Kátia Borges, que antes de se revelar uma cronista de mãos cheias já havia atravessado o Atlântico nas vozes poéticas da Bretanha e Bahia. 

 

Com olho de repórter e sensibilidade da poeta que sempre foi, Kátia é dona e senhora de um texto encantador. Aqui, com a graça do seu estilo, ela começa dizendo que sabe pouco de muitas coisas. Ora, o que mais precisa saber quem escreve lindezas como se seguisse uma pauta musical?

 

Kátia Borges se diz parte de uma geração que se perdia e se achava entre referências dispersas de música, literatura e cinema dos anos 60 e 70. Não faltam ressonâncias dessas vivências nesta sua coletânea de crônicas.

 

E como é bom ler tão bem traçadas linhas em tempos de dominante linguagem rastaquera, para dizer o mínimo. Destaque-se ainda que o título deste livro é um tiro ao alvo. Porque não é de hoje que a felicidade bomba no mercado editorial. Duas histórias que a envolvem contêm ingredientes para uma receita de best-seller. 

 

A primeira: 

“Felicidade a gente aprende, é preciso treino”. 

 

A segunda: 

“A teoria da felicidade”. 

 

Que Kátia captou em dois conselhos escritos de próprio punho por Albert Einstein, para oferecer como gorjeta a um camareiro do Hotel Imperial de Tóquio, e que em 2017 foram vendidos num leilão de Jerusalém por um milhão e meio de dólares. “Uma vida calma e modesta traz mais felicidade que a busca de sucesso e a inquietação constante”, dizia um dos bilhetes escritos em alemão. “Querer é poder”, ensinava o segundo.   

 

Para quem hoje dá o seu reino por um aconselhamento (ou seja, Deus e o mundo), isso paga o ingresso.  De quebra, o leitor recebe mais um precioso sortimento de biscoitos finos, servidos nas suas revisitas à infância e à adolescência, passando por fronteiras da nostalgia, histórias de cães e gatos, de uma galinha de estimação chamada Gertrude, da aerodinâmica dos pássaros. 

 

Além dos toques da sabedoria popular e da budista; dos casos de pequenas vilanias; de uma carta para Elisabeth Bishop; dos mistérios de Clarice aos acenos para Eduardo Galeano, Adélia Prado, Torquato Neto; João Gilberto Noll na Bahia; o casaco que Janis Joplin esqueceu em Salvador, onde, bêbada, cantou Summertime na zona do meretrício; as manias dos escritores. E mais e mais prosa, toda ela baianamente saborosa.  

 

Quer saber mesmo?

 

Feliz de quem vier a ler este livro.

 

Antônio Torres, também cronista, às vezes.

 

***

 

A aerodinâmica dos pássaros

Parece inacreditável hoje, mas na infância participei de uma caça a passarinhos com estilingue. Fomos, eu e Silverinha, no sítio de um tio no Litoral Norte. Não recordo com exatidão todas as circunstâncias, mas lembro que caminhamos dentro da mata até bem longe de casa e que, após atingir as aves com as pedras que levava nos bolsos, ele espetava os corpos dos pássaros caídos no arame farpado. 

 

Fiquei vendo Silverinha fazer aquilo e, confesso, o horror me tomou inteira. Decidi voltar sozinha para a sede do sítio, mas acabei perdida no caminho. Distraída desde sempre, andei uns poucos metros entre árvores que pareciam surgir pela primeira vez na minha frente. Era apenas o sítio de meu tio, onde tantas e tantas vezes brinquei com os primos, e não a floresta misteriosa de As Brumas de Avalon. 

 

Sabia que os adultos da casa não sentiriam logo minha ausência. De vez em quando eu me aventurava no rio que ficava no terreno ou desaparecia por algumas horas, catando licuri para encher o tonel que ficava na varanda, isso quando não estava escalando árvores, para sentir de perto o cheiro das folhas, arrancar as frutas no galho ou simplesmente ter, do alto, a visão do verde das coisas.

 

Minha mãe bem que tentava acompanhar tanto movimento. Para colocar um freio em minhas aventuras no sítio, fez com que toda a família reforçasse as lendas de que havia um jacaré dentro do rio. O bicho ali representava o “homem do saco” das ruas de Salvador, sempre pronto a levar as crianças desobedientes  para uma espécie de limbo.  Mal sabia que aquela história teria em mim um efeito contrário. 

 

Localizar   o   jacaré   do   rio   passou   a   ser   a   minha   obsessão   nas   férias   — aumentaram ainda mais, os meus sumiços no sítio. Só não sei até hoje como me meti nessa caça a passarinhos com Silverinha. Ele era bem mais velho e penso que me desafiou a mostrar coragem. Mas a verdade é que a coragem de matar as aves, eu simplesmente não possuía. Muito menos a habilidade necessária para armar a pedra no badogue. 

 

Naquele dia, como se cumprisse um itinerário de tortura, engolindo a raiva e avergonha, precisei esperar durante horas até que Silverinha ficasse cansado de acertar as aves com as pedras. E tudo aquilo pesou bastante nas decisões que tenho tomado desde então. Me refiro aos desafios aceitos só por orgulho. Aos amigos que pedem conselho, sempre falo sobre a queda que antecede o voo dos pássaros. Eu os observo da varandado apartamento onde moro, no décimo-segundo andar de um prédio. 

 

Gosto de tê-los perto por alguns segundos, como se não se incomodassem com a minha presença. É com certo prazer que me aproximo o quanto posso e deixo que sintam que nada desejo, nem mesmo capturar sua beleza. Nada nessa vida se compara à confiança de uma ave em sua queda. Um pássaro desconhece os princípios básicos da aerodinâmica.  Ele apenas confia em seu instinto. 

 

Fico surpresa ao saber que cientistas ainda pesquisam de que modo os pássaros enfrentam as correntes de vento. Fico pasma com a perenidade de alguns mistérios. Como as aves dormem enquanto voam? Alemães estudaram uma espécie conhecida como Fragata de Galápagos e descobriram que ela plana quando adormece, usando apenas um dos hemisférios do cérebro. E até sonha (até sonha!) durante cinco minutos. 

 

Cientistas, sempre eles, divulgaram uma pesquisa em 2017 sobre a adaptação das asas das aves às correntes de ar. Pretendem usar esse conhecimento nos cada vez mais detestáveis e invasivos  drones. O mundo é um lugar horrível? Tá certo. Mas, ao mesmo tempo, ele é repleto de beleza. Na internet, por exemplo, alguém perguntou outro dia por que os pássaros não voam até a Lua em um site de buscas.

 

 

Kátia Borges é autora dos livros “De volta à caixa de abelhas” (As letras da Bahia, 2002), “Uma balada para Janis” (P55, 2009), “Ticket Zen” (Escrituras, 2010), “Escorpião Amarelo” (P55, 2012), “São Selvagem” (P55, 2014), “O exercício da distração” (Penalux, 2017) e “A teoria da felicidade” (Patuá, 2020). Tem poemas incluídos nas coletâneas “Roteiro da Poesia Brasileira, anos 2000” (Global, 2009), “Traversée d’Océans – Voix poétiques de Bretagne et de Bahia” (Éditions Lanore, 2012), “Autores Baianos, um Panorama” (P55, 2013) e na “Mini-Anthology of Brazilian Poetry” (Placitas: Malpais Rewiew, 2013).

O escritor brasileiro Antônio Torres (Bahia, 1940) é romancista, contista e cronista, autor de 17 livros, entre os quais se destaca a trilogia formada por “Essa Terra”, “O cachorro e o lobo” e “Pelo fundo da agulha”, publicada em Portugal pela Editora Teodolito. Sua obra tem conquistado inúmeros prêmios no Brasil e traduções em vários países. Membro da Academia Brasileira de Letras, onde ocupa a cadeira fundada por Machado de Assis, Antônio Torres é também sócio correspondente lusófono da Academia de Ciências de Lisboa.

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