Cultura

Uma rotunda Boa Vista…

“Depois da civilização de Atenas e do Renascimento, entramos agora na civilização do derrière”

Pierrot le fou de Jean-Luc Godard

Fim de tarde estival, sol quase no poente. Na esplanada de um bar, dois clientes tomam, divertidos, um schopen Hauer* estupidamente gelado. O boteco situa-se numa praça em forma de círculo, que encanta sobremaneira um deles, cidadão caRioca, que pela primeira vez degusta umas Trip’s à moda do Porto.  Subitamente, o cicerone dispara.

Vais ficar banzado*, Davi, quando souberes como é que se chama esta praça, interpela em jeito de charada.

O visado pousa, fleumático, o copo na mesa, reagindo com uma enfadada ironia.

Como é que se chama, Chico?! E chamar para quê? Ela já está aqui e nós até estamos dentro dela…

Alfinetante, a observação do primo é recebida como uma intimação que ressoa a intimidação.

Sim, sim, Davi, tens razão…bem, o nome dela é Rotunda da BB.

Rotunda da BB?! Que BB? É uma homenagem à Brigitte Bardot?

Entre dois goles, Chico tem tempo e espaço para sorrir, malicioso, e ser preciso q.b., na correção.

Não, não, a rotunda não é dessa BB, é de outra BB… Quando souberes vais ficar todo babado.

Davi começa a demonstrar impaciência.

Deixa de conversê, primo, chega de gozação, protesta.

Ok, muito bem, BB são as letras iniciais de Boa Bunda, percebes?!

Por pouco que o turista não se engasga com o trago da lourinha. Quanto a seus ouvidos, ambos acolhem a revelação da bizarria com aquela proverbial subestimação de quem julga estar dialogando com um interlocutor cada vez menos sóbrio. A desconfiança expressa-se no gesto de afastar a garrafa do anfitrião.

Rotunda da Boa Bunda….  e você só tomou dois copos, Chicão. Só pode estar de porre* ou então no gozo, atenua.

A sugestão de Davi abre ensejo a um alarde de brejeira insinuação.

Gozo ainda não há, mas não perdes por esperar, podes crer, replica.

A rotunda, que até já foi palco de feiras do livro, tem no meio um jardim, ornado de árvores variadas que anos mais tarde Davi virá a saber serem liquidâmbares, carvalhos, tílias, tulipeiros. E ainda duas palmeiras. No momento, o visitante está, contudo, mais motivado para admirar a tal árvore exótica.

Chico, vista daqui a rotunda até é legal, mas me mostra então a boa bunda dela?

Já vais vê-la, Davi, não te excites, recomenda num tom de jocosa provocação.

Minutos depois, junto ao monumento aos Heróis da Guerra Peninsular, após breve deambulação pelo jardim, o guia desfaz, por bom fim, o enigma.

Quem tal a vista, Davi? É uma bela vista, Chico, mas cadê a boa…

Pois é, quase que acertaste, estamos no centro da Rotunda da Boavista.

Boa…vista… ?!

Sim, ou da Boabista, como dizem muitos tripeiros.

Num assomo dissimulado, Chico baixa então a cabeça, cola o olhar no saibro ressequido do caminho e justifica, faiscando um sorriso escarninho.

Sim, a tal boa…bunda é um fetiche meu, uma fantasia…

Fantasia, companheiro?! Isso a gente veste no Carnaval. Que ainda vem longe, Seu Chico Malandro.

Na época deste fait-divers, os derrières femininos ainda não atingiam a alta cotação atribuida nos dias de hoje, valoração tecida a fio dental. Nem se podia admirar a, tão em Vogue, bilionária Bündchen da Gisele. Os bundófilos da gama do Chico e do Davi tinham de se contentar com a BB, entenda-se Boa Bunda da fulgurante Brigitte Bardot, liturgicamente venerada em Le Mépris, de Jean-Luc Godard (1). É que, se Deus, através de Roger Vadim, criou a mulher, God modelou o bumbum dela.

Mas a partida armada pelo Chico teve muito de profético. E nem foi preciso esperar pela chegada de Momo com seu séquito de abundantes cabrochas*, vestindo fantasias minimalistas. Imaginem só onde é que ele avistou a (Boa) Bunda (assim mesmo, com B maiúsculos) mais deslumbrante da História? Pelo menos da dele.

Fazia um nublado dia de julho, em latitudes onde o verão nunca é uma estação, não passando de um apeadeiro. Francisco de Pádua caminhava, um tanto absorto,  no passeio do Shopping Brasília,quando….quando quase fruiu a arte do encontrão. Num voo rasante, um avião planava a seu lado, alardeando o aplomb da Princesa Odette de ‘O Lago dos Cisnes’.

A jovem teria pouco mais de 20 anos e caminhava altiva, formosa e segura. Esbanjava elegância, espargia fascínio, aparentando estar ciente da retumbância de seu bumbum. A moça até podia ser pudibunda, mas não tinha uma pudimbunda. Pelo contrário, parecia ser uma retaguarda firme e enxuta. Não era uma bunda mole. Calibrada na pressão certa, nutrida de carne forte. De certeza que não precisava de retoques estéticos a golpes de bisturi. Uma al-búndiga* bem rotunda.

Fotografia de Man Ray, “La prière”, 1930

 

Só pode ter saído da Casa das Bundas Ditosas, admitiu Chico, parafraseando o título do livro que acabara de comprar.

Conforme me contou, seria um ass assaz bem modelado, que mãos assanhadas adorariam devassar, a ponto de a tornar uma vagabunda devassa, desprovida da mínima bundicícia. Sua dona aparentava não ser uma pessoa meditabunda, nem suscetível de ficar furibunda perante um olhar mais analítico. Senhora de um equilíbrio helênico, a bundamor era até parecida com as rotundas fesses da Lee Miller, em pose de (ad)oração, no clichê La Prière, clicada pelo Man Ray (vide imagem).

A senhoria da bundelícia em apreço trajava uns minishorts de jeans, de bainhas desfiadas e uma sweatshirt tai dai, tingida de tons esmeralda. Que benfazeja sessão de bundaterapia.

Foi uma aparição fugídia, uma visão fugaz. Mesmo assim deu para escutar que não seria uma bunda lusófona. Um detalhe afinal secundaríssimo, mesmo que essa BB fosse natural da Papua Nova Guiné.

Na Alemanha, ela ganhava de certeza a bundesliga. Boa bunda não tem nacionalidade, mas esta deve ter vindo de Bundapeste, de Bacu ou do Bundistão, diverte-se Chico, inspirado pela sua crônica malandragem.

O que esta bundapão tinha era naturalidade. Tanto quanto a opacidade do tecido deixava adivinhar, seus glúteos e coxas pareciam imunes aos culotes, isentos da praga das estrias e da celulite. O apogeu arrasador da juventude exsudava-se dessa bundanil ao mesmo tempo descarada e impudica, da linhagem de uma bundeusa ou da estirpe de uma bundemônia.

Expedita, celular colado com Araldit ao ouvido, como toda mulher modernosa que se preza, a senhorita entrou no Brasília, subiu as escadas rolantes e logo desapareceu no labirinto, quem sabe em busca de uma brusca desbunda. Pela voz deu p’ra captar a suspeita de que ela não seria, afinal, tão feminina assim…

Nos dias, semanas seguintes, a testemunha ocular do fenômeno ponderou a melhor maneira de prestar tributo à tão pródiga abundância, capaz de superar o culo felliniano da Gradisca (Magali Nöel) em Amarcord.  Poetar um haiku nunca esteve em cogitação. Ao Chico não custava reconhecer o escasso estro que tinha para esses poéticos alardes.

Você não concorda que seria muito mais apropriado que a Rotunda da Boavista passasse a ter o nome de Rotunda da Boa Bunda?, perguntou-me ele, num tom que demandava aprovação.

Porquê não lança uma petição pública, daquelas que pululam na Internet?, alvitrei. Na verdade, há por aí causas muito menos generosas pleiteando reconhecimento. Muito embora, Chico não disponha de um dossiê documental da Bundacor avistada, que credibilize formalmente o peditório.

Recordei-lhe que chega a ser fetichista a atração dos autarcas deste país por rotundas, em regra esteticamente nauseabundas, desprovidas de obras de arte deste gabarito. Assim, até pode acontecer que o edil portuense, que não é nenhum bundão, adira à causa, mesmo sem ter enxergado esta Bundadorável, argumentei.

Francisco estará assim ponderando propor à Direção de Toponímia da Câmara Municipal do Porto que altere o nome –raramente evocado- da Praça Mouzinho de Albuquerque. Eis a designação oficial da rotunda, que no século XIX era um logradouro onde se realizava a Feira de S.Miguel.

Julgo que não estará sendo mauzinho com este mitificado “herói” militar português. Além do mais, 11 em cada 10 portuenses não sabe que figura histórica é homenageada desde 1903, na toponímia da  praça.

Sublinhe-se que a Boa Vista estaria sempre preservada. Afinal, para todos os efeitos e defeitos, uma rotunda Boa Bunda é sempre uma Boa Vista, qualquer que seja o sexo, o gênero ou até o transgênero. E não há homem e/ou mulher que resista.

*Glossário

Schopen Hauer – fino, imperial dessa marca

Banzado – espantado

Porre – embriaguez

Cabrocha – mulher mulata jovem

Al-búndiga- a bolinha, em árabe. Tudo o que tivesse a forma arredondada, era denominado de búndiqa

NOTA:

Le Mépris provou, em definitivo, que a BB além de ser boa atriz, era, outrossim, boa atrás, passe o plebeísmo. Nesse filme, a personagem Paul Javal (Michel Piccoli) reflete irônico: “As mulheres exibem orgulhosas seus vestidos. Aí, vem o Cinema e passamos a ver seus traseiros.”

 

Fotografia de Danyel Guerra

Danyel Guerra (aka Danni Guerra) nasceu em São Sebastião do Rio de Janeiro, no Brasil, num dia de Vênus  do mês de novembro, sob o signo de Escorpião. No ano em que Agustina Bessa-Luís publicava ‘A Sibila’. Guerra tem uma licenciatura em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

São de sua autoria os livros ‘Em Busca da Musa Clio’ (2004), ‘Amor, Città Aperta’ (2008), ‘O Céu sobre Berlin’ (2009), ‘Excitações Klimtorianas’ (2012), ‘O Apojo das Ninfas’ (2014), ‘Oito e demy’ (2014), ‘O Português do Cinemoda’ (2015) e ‘Os Homens da Minha Vida’ (2017).

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