Cultura

As meninas grávidas

Do livro Sangue Suor Lágrimas  de Cecília Barreira, Cordão de Leitura , 2021

Na cidade branca  as meninas entre os 12 e os 17 anos apareceram grávidas de uma noite para o dia.

Os pais não queriam acreditar.

( Meninas  de família).

Quem fora o responsável?

Um meliante? Violadores em série?

As meninas de nada se lembravam. 

A pandemia obrigara a um confinamento.

As aulas tinham decorrido à distância.

As férias, com a família chegada.

Os  pais, enlouquecidos, desataram a telefonar para a polícia.

Mas as proporções eram tais que, desde o governo aos partidos políticos,  todos  se interrogavam e  procuravam culpados.

Os órgãos de comunicação social não falavam de outra coisa.

Os evangélicos diziam à  fartazana: – Que depravação.

Os médicos, para eles, só poderia ser uma mera coincidência.

Os pais, furibundos, queriam o nome do flagelador .

Kevin estava orgulhoso de si próprio.  Uma aplicação de telemóvel que  construiu  de raiz com informáticos e investigadores tinha conseguido o impossível : engravidar as  jovens, dessa faixa etária,  que usassem Instagram ou  TikTok.

A ciência do futuro.

Ninguém tocara fisicamente em ninguém.

(Outra aplicação estava em andamento:  os mais velhos acordariam 30 anos mais novos. Os perturbados mentalmente, acordariam serenos).

 Um dilúvio de pedidos de consulta nos hospitais privados  e públicos na modalidade de ginecologia.  

(As pessoas não sabiam que a  medicina já avançara  tanto que era possível adiar a morte por anos sem fim).

As polícias, tudo, andavam num afã.

Um investigador policial, ao falar com cientistas, ponderou a hipótese de uma aplicação virtual.

A indignação não parava.

Um dos cientistas denuncia Kevin, receoso de tanta exposição mediática.

A polícia  segue o rasto de Kevin. Já se encontrava  em França. 

Mas foi capturado. Metido numa prisão de alta segurança.

Na comunicação social não se falava de mais nenhum assunto.

Os pais pediam  a pena de morte para o violador.

Muitos investigadores e informáticos de elite estiveram na base dessa aplicação.

Clamava-se alto por Justiça.

As famílias queriam indemnizações. 

As meninas choravam. Já não podiam ver os namorados. O medo instalara-se.

Da blasfémia à renúncia, pais e mães temiam até o ar que respiravam.

As comoções acendiam-se alto.

Por entre ventos e palavras, o mundo nunca mais seria o mesmo.

Fotografia de Cecília Barreira

Cecília Barreira é actualmente professora de Cultura Contemporânea na Universidade Nova de Lisboa. Pertence ao CHAM, onde é investigadora de periódicos. Pertence aos grupos de pesquisa AMONET e IRENNE, sobre questões de género. Licenciada em História, com Doutoramento e Agregação em Estudos Portugueses, interessa-se particularmente pela História das Mentalidades. Publicou diversos ensaios e livros de poesia e neste domínio, estreou-se em 1984 com Lua Lenta. Seguiram-se A Sul da Memória (1987), Memórias de uma Deusa do Mar (1995), 15 anos de Alguma Poesia (1999), 7&10 (2003) e Cartas BD (2005), As Opções Ideológicas e o Fenómeno Feminista em Portugal (2009), Do Diário de Lisboa à Revista Maria (2016), Quirino de Jesus e Outros Estudos (2017) e Voando sobre um Ninho Fêmeo (2019).

 

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